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Este caso é também um exemplo da tendência para confundir «a língua tal como eu (acho que) a uso» com «a língua como deve ser usada pelos outros». Esta atitude não é (como se arroga) uma defesa da correcção, mas antes uma dificuldade em lidar com a variação.
Os casos em que não há variação não levantam problemas — ninguém pestanejou perante os nomes em que usamos sempre ou não usamos nunca o artigo («a Alemanha»; «Portugal», etc.).
O problema não é o artigo ou a falta dele: é a variação! Quando há variação, chega sempre alguém com vontade de arrumar a língua numa lógica simplista, uma lógica que não repara nas subtilezas do uso real dos falantes e não gosta de ter várias opções.
Quem tem esta dificuldades costuma argumentar: mas é preciso haver uma norma! Pois é, mas a norma tem de admitir a tal variação, sob pena de ser cada vez mais artificial, limitada e distante do uso real. E, neste caso, a norma dá-nos estas duas opções. É a vida!
Esta dificuldade em lidar com a variação (e note-se que a variação existe em todas as línguas e em todas as épocas) também levou, durante muito tempo, a que algumas pessoas criticassem sotaques diferentes — felizmente, hoje, já poucos atacam algo tão simples como a variação na leitura do número «dezoito».
Já o comentário «Se eu gozava com quem usava isto é porque está errado!» também mostra outra coisa interessante sobre as nossas atitudes perante a língua: as palavras e a sintaxe estão, muitas vezes, associadas a determinados grupos e a nossa atitude perante elas tem muito que ver com essa associação.
No fundo, cada palavra ou construção tem o prestígio que tem o grupo com o qual a associamos. É assim em todas as línguas — o problema é que, na cabeça de muitos, a falta de prestígio está associada a um defeito intrínseco, como se dizer o nome sem artigo fosse inerentemente melhor do que a outra opção.
Sim, certas formas ganham estatuto de norma, mas é esse estatuto que lhes dá o ar de correcção e não a sua suposta perfeição ou lógica — ou beleza. (Um parêntesis em relação à beleza: a norma parece-nos mais bela porque é usada, em geral, por grandes artistas da língua.
No entanto, em muitas línguas, há poetas e escritores que fazem maravilhas bem longe da norma. É possível fazer coisas bonitas com todo o tipo de material, com todo o tipo de palavras — as que saem da boca do rei e as que saem da boca do camponês. Então quem souber misturá-las com talento…)
Na verdade, já me estou a desviar muito: afinal, dizer «a França» não é um desvio à norma…
A língua não é simples: está cheia de subtilezas, de regras implícitas que cumprimos mas não conhecemos, de cambiantes de sentido e de sabor porque abrimos ou fechamos uma vogal.
Dizer isto — e não ir na cantiga de quem inventa erros sem justificação, disparando primeiro e perguntando depois — não quer dizer (bem pelo contrário) que vale tudo.
Quem disser «cheguei ao Portugal» precisa de aprender a falar melhor… Já quem disser «Venho da França!» precisa é de ser recebido de braços abertos.
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
Saiba mais nesta página.
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Nós aqui do sul adoramos dar nomes femininos quando cargo é exercido por mulheres e o masculino termina com a letra O. Em Portugal notei que isto era menos comum. Ainda segue assim? Por favor, desconsidere nossa ex presidentA. Isto é patologia petista, pois a profissão / cargo finaliza com E. Ou seja ela aqui é médica. Em Portugal ela ainda é médico?
Walmir, a palavra “presidenta” consta dos dicionários desde o início do século XX.
A nossa ex-PRESIDENTA, sim! E negar o uso da variação de gênero neste caso é patologia de bolsominion e direitista acéfalo, que não sabem o mínimo de português e precisam urgentemente ser estudados pela NASA. Abaixo o fascismo!!! #EleNão #ÉlNo #NotHim
Sempre com textos gostosos de se ler, hein.
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Marco, nós, brasileiros, usamos o artigo definido (feminino ou masculino) diante de todos os países. Além dos que você citou, também: o Brasil, a França, a Bélgica, a Espanha, a Suíça, a Nicarágua, a Guatemala, os Estados Unidos, o Canadá, a Itália, a Noruega, a Finlândia, a a Dinamarca, a Etiópia, o Congo, a Somália, o Egito, a Argélia, a Síria, o Líbano,o Paquistão, a Índia, o Japão, a China, o Irã, o Afeganistão, o Havaí, a Groenlândia (ilha), os Açores (arquipelago), o Sri Lanka, a Coreia, a Tailândia, o Paraguai, o Uruguai, a Argentina, a Colômbia, a Venezuela, o Equador, o Chile… Fazemos algumas exceções (diante das quais não usamos o artigo): Portugal, Cuba, Marrocos, Gana, Bangladesh, Honduras, El Salvador, Belize e outros países e ilhas. Não sei explicar a razão disso. Mas, então, para nós, é correto dizer: Volta à França (entendo que é a Tour de France), não o regresso à França, não é assim? Já com as cidades não usamos artigo: todas as do Brasil, como Recife, Fortaleza, Teresina, São Paulo, Florianópolis, Curitiba, Brasília, Belo Horizonte, Belém, Manaus e o resto, à exceção do Rio de Janeiro (porque rio já existia como acidente geográfico; uma corrente de água). Do mesmo modo, o Porto (que também já existia como substantivo comum: o lugar onde os navios aportam).
Nós, os portugueses, usamos os artigos do mesmíssimo modo!