«Volta à França» será erro de português?
Há quem ache que aquele acento ali no meio é erro. Há quem não aceite o nome português da velhinha Volta à França! «Volta à França» será erro de português?

Já sei, já sei — tenho andado afastado da tarefa de proteger aquelas boas expressões que, por azar, são vítimas da fúria dos inventores de erros. A vida dá muitas voltas e não tenho tempo para tudo. Mas não resisto a partilhar este achado: há quem não aceite o nome português da velhinha Volta à França! Há quem ache que aquele acento ali no meio é erro…
Bem, tudo aconteceu num recanto perdido pelos subúrbios da Internet, num postal de Facebook que entretanto foi apagado — e tenho pena que o tenha sido, porque o diálogo era bem ilustrativo de alguns enganos típicos nestas coisas da língua e do que é ou não correcto. Assim, tenho de me socorrer da minha memória.
Então e qual era a lógica de quem achava que aquele acento estava incorrecto? Bem, a lógica era: como não dizemos «a França», não podemos dizer «Volta à França».

Perguntarão agora os meus caros leitores: então, mas não dizemos «a França»? Segundo alguns dos comentadores furiosos, não. Nomes de cidades e países? Tudo sem artigo! Afinal, não dizemos «o Portugal», pois não? Nem «a Lisboa», pois não? Houve até quem dissesse: antigamente gozávamos com os emigrantes por dizerem «Vim da França!». Agora já não podemos gozar?
Pois, não podemos, porque emigrante que diga isso está a dizer muito bem.
Mas porque trago para aqui uma pequeníssima polémica escondida no Facebook a quem ninguém vai ligar (e até já foi apagada)?
Porque é mais interessante do que parece.
Primeiro, o caso é um exemplo de como, às vezes, baseamos as nossas certezas num ou dois casos, sem nunca procurar os casos contrários. E é tão fácil encontrar casos contrários nesta questão — digam comigo: «a Bélgica»! «O Brasil»! (Sim, estive a ver um jogo…)

Ora, essas péssimas certezas dão logo para a gritaria: para o pequeno grupo ali ajuntado à esquina virtual, quem contrariasse a sua certeza era porque não sabia português — ou era um desses linguistas (malandros!) que aceitam tudo. Até aceitam «Volta à França»! (E até aceitam «ajuntado»!)
Em segundo lugar, este erro falso é interessante porque é uma desculpa para reparar neste recanto da nossa língua: o uso dos artigos antes dos nomes dos países (se acha isto aborrecido, está no blogue errado).

Limpemos a mesa: hoje, olhamos só para os países. Esqueçamos cidades e regiões. A questão é, portanto: devemos usar artigo antes do nome dos países? Por exemplo, na frase «O meu país preferido é _____ [nome do país]», o espaço em branco leva artigo ou não?
Ora, a maioria dos países, em português, leva artigo! Reparemos: «a Alemanha», «a Rússia», «os Estados Unidos», «o Brasil», «a Guatemala», «a China», «a Austrália», «o Zimbabué», «a Índia», «a Suécia», «a África do Sul», «o México», «o Canadá», «a Hungria», «o Equador», «o Japão», «o Irão»… Podia continuar aqui a noite toda.
Dizem-me logo os leitores mais atentos: há excepções, não é assim? Claro. Começamos logo cá por casa: «Portugal». Não usamos artigo… «O meu país preferido é Portugal.» (Curiosamente, o artigo aparece em construções um pouco arrevesadas, como «o Portugal da minha infância»; mas deixemos essas nostalgias para outro dia.)
Que outros países não levam artigo? Os exemplos são escassos, mas temos: «Moçambique», «Angola», «Cabo Verde», «São Tomé e Príncipe», «Timor»…

Reparou naquilo que une todos estes países? De facto, dos países de língua oficial portuguesa, apenas o Brasil e a Guiné-Bissau levam artigo. Enfim, a amostra é pequena, acalmemos os cavalos das extrapolações. Adiante.
Para lá dos países que usam o português como língua oficial, há mais países sem artigo: «Marrocos», por exemplo. Ou «Omã», salvo erro (não é nome que use muito). Mais? «Cuba»; «Porto Rico» (não é independente, mas passa)… E uns quantos mais (muitos deles, vá-se lá saber porquê, nas Caraíbas).
Ou seja, temos uma tendência geral para usar o artigo, mas as excepções são muitas e incluem alguns dos nomes de países que mais usamos.
Por fim, temos os casos curiosos de Espanha, França, Inglaterra, Itália… Nestes casos, há variação. É possível ouvir «vivo em Espanha», mas também «a Espanha é um país enorme». Eu diria, sem pestanejar, «vim da França ontem», pondo lá o artigo — mas também podia dizer «há muitos portugueses em França», esquecendo o artigo.
Em certas construções, o uso do artigo dá um certo tom mais informal à frase, mas a análise dessa informalidade dependerá muito da sensibilidade de cada um. Seja como for, não estamos perante uma incorrecção como seria, por exemplo, «Volta ao Portugal».
No caso de «Volta à França», o nome é mais usado assim, com acento, embora também encontre, nalguns jornais, o uso de «Volta a França». Curiosamente, pronunciamos sempre da mesma maneira, pois mesmo sem artigo os dois «aa» ali seguidos transformam-se numa vogal aberta. Coisas da língua falada.
(cont.)
Nós aqui do sul adoramos dar nomes femininos quando cargo é exercido por mulheres e o masculino termina com a letra O. Em Portugal notei que isto era menos comum. Ainda segue assim? Por favor, desconsidere nossa ex presidentA. Isto é patologia petista, pois a profissão / cargo finaliza com E. Ou seja ela aqui é médica. Em Portugal ela ainda é médico?
Walmir, a palavra “presidenta” consta dos dicionários desde o início do século XX.
A nossa ex-PRESIDENTA, sim! E negar o uso da variação de gênero neste caso é patologia de bolsominion e direitista acéfalo, que não sabem o mínimo de português e precisam urgentemente ser estudados pela NASA. Abaixo o fascismo!!! #EleNão #ÉlNo #NotHim
Sempre com textos gostosos de se ler, hein.
Keep going. Feed me with your knowledge!
Marco, nós, brasileiros, usamos o artigo definido (feminino ou masculino) diante de todos os países. Além dos que você citou, também: o Brasil, a França, a Bélgica, a Espanha, a Suíça, a Nicarágua, a Guatemala, os Estados Unidos, o Canadá, a Itália, a Noruega, a Finlândia, a a Dinamarca, a Etiópia, o Congo, a Somália, o Egito, a Argélia, a Síria, o Líbano,o Paquistão, a Índia, o Japão, a China, o Irã, o Afeganistão, o Havaí, a Groenlândia (ilha), os Açores (arquipelago), o Sri Lanka, a Coreia, a Tailândia, o Paraguai, o Uruguai, a Argentina, a Colômbia, a Venezuela, o Equador, o Chile… Fazemos algumas exceções (diante das quais não usamos o artigo): Portugal, Cuba, Marrocos, Gana, Bangladesh, Honduras, El Salvador, Belize e outros países e ilhas. Não sei explicar a razão disso. Mas, então, para nós, é correto dizer: Volta à França (entendo que é a Tour de France), não o regresso à França, não é assim? Já com as cidades não usamos artigo: todas as do Brasil, como Recife, Fortaleza, Teresina, São Paulo, Florianópolis, Curitiba, Brasília, Belo Horizonte, Belém, Manaus e o resto, à exceção do Rio de Janeiro (porque rio já existia como acidente geográfico; uma corrente de água). Do mesmo modo, o Porto (que também já existia como substantivo comum: o lugar onde os navios aportam).
Nós, os portugueses, usamos os artigos do mesmíssimo modo!