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«Fazer a barba»
Descobri, há uns tempos, que alguns recrutas andam por esses quartéis a fazer flexões porque tiveram o azar de dizer «fazer a barba». Segundo alguma mente quadrada que um dia apareceu por lá, não pode ser. A barba não se faz, corta-se. Logo, o correcto seria «desfazer a barba».
A língua não é usada às secas, num laboratório, mas na vida real, onde alguém que acaba de se levantar e tem a mãe a dizer: «faz a cama!» não se põe a martelar e a construir uma cama nova. Nós não somos assim tão burros!
E o verbo «fazer» não é assim tão limitado… Significa «construir», mas também uma série de outras coisas. O que pensarão estas pessoas da expressão «fazer amor»?
Um homem que faz a barba, não está a construir uma barba. Está a fazer alguma coisa, de facto: a cortar a sua barba cortadinha e pronta para o dia… Se a minha mulher me perguntar, pela manhã, «o que estás a fazer?» e eu disser «a barba», onde está o erro?
(Alguns gritam logo: ah, mas eu digo «cortar» para evitar ambiguidades! Ora, eu também digo «cortar», de vez em quando. Mas para evitar ambiguidades? Em que universo paralelo vivem estas pessoas, que acham possível imaginar um homem a construir uma barba todas as manhãs?)
«Já agora»
Esta é uma expressão que alguém condenou porque «já» e «agora» querem dizer a mesma coisa. E é verdade que sim. Mas será que as línguas não têm expressões idiomáticas? Uma expressão nem sempre tem um sentido deduzível olhando para as palavras que a compõem.
«Já agora» é uma expressão idiomática — não quer dizer nem «já» nem «agora».
A palavra «já», aliás, tem um uso variado que me deixa espantado:
- «Já que estás aqui…»
- «Quero isso já!»
- «Já cá cantas…»
- «Já me dizias a verdade…»
- «Já agora, diz-me as horas.»
- «Já agora! Era o que faltava!»
E podíamos continuar…
Isto é uma riqueza, é saboroso, é a nossa língua.
«Beijinhos grandes»
Esta é uma expressão da língua que vi condenada quando o livro já estava quase fechado. A Inês Figueiras, que reviu o Dicionário, pode confirmar: foi mesmo no último momento que incluímos esta entrada.
E é um excelente exemplo de erro falso! É uma tentação dizer: «Ah, não, se são beijinhos, não podem ser grandes.» Pronto, já apanhei o outro em falso… Já ganhei o dia!…
Ora, fico um pouco preocupado com quem se deixa enganar por esta peculiar matemática dos beijinhos. Na verdade, o sufixo «-inho» nem sempre significa «pequeno». Além disso, ninguém devia andar a medir os beijinhos para ver se estão em conformidade com o tamanho indicado pela fórmula que usamos para os dizer…
Mas nem é preciso ir por aí: mesmo ilógica (e não é!), estamos perante uma expressão idiomática!
Enfim, penso eu: o que dirão quando eu olho para o meu filho e digo: «ah, o meu filhinho está tão grande!»… Então e se eu disser «está grandinho…»? Misturo o diminutivo com a palavra «grande»! Mereço uma reguadazinha? Ou uma reguada mesmo a sério, sem -inho nem carinho?
O mais curioso foi um comentário que ouvi sobre a expressão. Alguém me disse: «É erro, claro! Então, não há-de ser? Se é uma expressão que só as mulheres dizem…» Fiz uma careta de vergonha alheia… Pelos vistos, se uma expressão é exclusiva do sexo feminino, é erro. Acho que o tal homem não merece beijinhos — nem grandes nem pequeninos.
«Queria ou quer?»
O pensamento literalista que critico no livro culmina na famosa piada de algibeira: «queria ou quer?». Como o verbo está no pretérito, teria de ter um significado relacionado com o passado…
Não, neste caso estamos a usar aquilo que muitos chamam «imperfeito de cortesia». É apenas uma forma de boa educação! Erro só na cabeça dos linguistas instantâneos que por aí circulam.
Como mostro no livro, os tempos verbais em português (e noutras línguas) tem um uso muito mais subtil e rico do que pensamos à primeira vista. Basta olhar para o pretérito perfeito composto do indicativo. Ou seja, o tempo verbal da frase «Eu tenho falado com ele.». Quer dizer algo tão preciso como isto: «falei com ele várias vezes nos últimos tempos».
O próprio presente do indicativo serve para muita coisa — e raramente se refere ao momento presente. Se eu disser «eu falo com ele», estou a referir-me ao futuro. Se eu disser «eu falo grego», estou a dizer alguma coisa que eu sei fazer, mas não quer dizer que a esteja a fazer agora… E se alguém entrar aqui no meu escritório neste preciso momento e eu estiver ao telefone, uso o presente do indicativo? Não. Direi algo como: «O António chegou agora!» No pretérito perfeito! Misturado com a palavra «agora»! Ah, se eu fosse inventor de erros, tinha aqui muito material…
O rigor e o prazer da língua
Os erros falsos deste livro são uma desculpa para olharmos para a língua com mais atenção. No fundo, este livro tenta fazer algo que, confesso, é difícil: olhar para a nossa própria língua como se fosse a primeira vez.
Tento levar o leitor a entrar na toca do coelho: quando começamos a olhar para a língua de certa maneira, encontramos um território por explorar que vai muito para lá dos erros… O mecanismo linguístico que temos no cérebro é um espanto. Este livro é uma pequena janela para esse espanto.
Mas o Dicionário também é um livro de combate: combato o literalismo nas análises linguísticas; combato o empobrecimento da língua; e defendo uma atitude saudável perante a variação linguística.
É também um combate pelo rigor: neste caso, pelo rigor do pensamento sobre a língua. Devemos recusar simplismos e ideias falsas. Não nos enganemos: a visão da língua que apresento no livro é uma visão exigente. Mas também, espero, uma visão que abre as portas ao prazer do bom conhecimento sobre a língua.
As palavras têm uma vida secreta, para lá das aparências. Portam-se mal! E ainda bem: são bichos bem mais interessantes do que seriam se cumprissem as ordens de quem as quer bem-comportadas, cada uma no seu sítio, sem redundâncias, sem repetições, sem o sal que dá gosto à língua.
Este dicionário é, portanto, uma homenagem ao português — e uma homenagem aos falantes da língua, com as suas vidas complicadas, onde mesmo assim vamos encontrando espaço para o riso e para o prazer. Se cada leitor se rir um pouco ao longo da leitura — e sentir um poucochinho de prazer — fico feliz. Foi para isso mesmo que escrevi este livro.
O livro pode ser encontrado nas livrarias. Se desejar receber em casa um exemplar autografado, sem custos de envio (em Portugal), pode fazer a encomenda nesta página. Obrigado!
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
Saiba mais nesta página.
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