_
As palavras de pijama
Por vezes, o problema é outro. Há palavras que não são adequadas a certas situações. Todos sabemos que os palavrões fazem bem quando damos com o dedo do pé na porta, mas não são assim tão simpáticos numa sala de aula ou no parlamento.
Todas as palavras vêm com esta espécie de mapa de interdições. Não é dramático. É assim em todas as línguas.
Olhemos para certas palavras do registo popular.
Por exemplo:
- «destrocar»;
- «deslargar»;
- «desandar».
São palavras de um certo registo, com um determinado mapa. Não defendo que subamos ao palanque do Parlamento e comecemos a dizer: «Espero que Sua Excelência deslargue este assunto!». Nada disso.
Agora, o problema é que há quem julgue serem estas palavras sinal de estupidez, por serem pouco lógicas ou erros de português. Não são: são tão lógicas como «desinquietar», «desfalecer» ou como todas as palavras com vários significados que existem em português. E são verbos realmente existentes na língua, que seguem as regras da conjugação verbal — e são usados pelos falantes…
Calhou apenas, pela lotaria do uso da língua pelos séculos fora, que «destrocar», «deslargar» e «desandar» fossem arrumadas no registo popular. Não digo que não venham a mudar de registo. Já aconteceu. Mas isso são questões que estão longe de problemas de lógica ou de gramática — e, acima de tudo, o uso destas palavras não é uma questão de inteligência!
Alguns dirão: se posso dizer «deslargar», quer dizer que vale tudo!
Não, não vale tudo! Não podemos dizer o que quisermos onde quisermos. Este dicionário passa grande parte do tempo a dizer isso mesmo. Tem avisos em várias entradas sobre as situações ou espaços onde as palavras são aceitáveis. Podemos concordar ou não com essas interdições, mas as coisas são como são.
E, não, não vale tudo. Há muitas formas de usar mal a língua. Basta pensar que se eu quiser usar «desinquietar» com o sentido de «acalmar» vou ter problemas.
Muito deste medo do «vale tudo» tem origem na dificuldade em lidar com palavras que são habituais na boca doutros falantes, mas não nos nossos círculos próximos. Julgamos que essa diferença equivale a erro ou ignorância da parte dos outros. Dou o exemplo do substantivo «comer», como na frase «O comer está na mesa.». É uma expressão típica do registo popular. Está errada? Não! Segue o mesmo padrão de «o saber», «o olhar» — são palavras que saltaram de categoria. Eram verbos, mas agora também são substantivos. «O comer» irrita muitas famílias? Sim. Mas a culpa não é da gramática.
Na língua, há registos diferentes, variação regional, social, individual. É um dos factos universais da linguagem humana. Temos de ser exigentes e tentar conhecer a língua sem cair em ideias simplistas. É também para isso que existe este livro.
A curiosidade da língua
Combater os erros falsos é, entre outras coisas, uma forma de combater o empobrecimento da língua. Como explico no livro, se um destes mitos começa a espalhar-se, a expressão pode mesmo ver-se arredada do discurso cuidado da língua. Por exemplo, «já agora». Há quem veja nesta expressão um erro. Se a ideia pegar (espero que não!), poderá começar a ser impossível usar tal expressão num texto cuidado. Apenas porque alguém olhou para «já agora» e encontrou ali qualquer coisa que não fazia sentido. Se deixarmos estes caprichos tomarem conta da língua, lá vão pelo cano as expressões idiomáticas ou as expressões populares…
Mas a motivação mais importante que me levou a escrever este livro é outra: a curiosidade. No fundo, eu aproveito estes momentos em que alguém embirrou com uma característica da língua para obrigar o leitor a olhar para a português com olhos de espanto (ou talvez melhor dizendo: ouvidos de espanto).
No fundo, estou a aproveitar-me dos erros falsos para criar a sensação de estranhamento — um conceito que vem da literatura e uso aqui para olhar para a língua.
É uma estratégia para nos obrigar a reparar no português — pelo caminho, ficamos um pouco mais abertos a tudo o que a língua nos oferece e, acredito, mais preparados para usar toda a gama de expressões que temos ao dispor. Ficamos a conhecer melhor a língua, com a mente aberta e a necessária dose de rigor.
Vejamos, apenas como exemplo, alguns dos erros falsos de que se ocupa o dicionário.
«Tirar impressões digitais»
O verbo «tirar» tem, na nossa língua, muitos sentidos. Quando digo «tirar uma fotografia», «tirar uma impressão digital», «tirar uma fotocópia», estou a usar o verbo com um sentido perfeitamente avalizado pelos falantes — falo da criação de uma imagem de determinado objecto ou paisagem.
Isto é assim na vida real da língua — mas há quem ache que este verbo só pode ter um significado: o sentido de «retirar» ou «remover». Logo, «tirar uma fotografia» não faria sentido. E, no entanto, na cabeça dos falantes, faz… Será milagre?
É preciso imaginar uma situação particularmente abstrusa para que alguém oiça a frase «tens de tirar as impressões digitais» e imagine que a proposta implica cortar as pontas dos dedos. Da mesma forma, «tirar uma fotografia» tem um significado transparente.
Alguns dirão: ah, mas temos de variar o vocabulário! E claro que temos. Mas não é eliminando significados aos verbos que vamos conseguir um vocabulário mais rico. Antes pelo contrário…
(cont.)