Conheça o dicionário de tripeiro. Quem vê de fora pensa que é apenas calão, mas é mais do que isso: é transportar para as palavras um espírito de união.
O que distingue o falar do Porto, mais que a maior ou menor criatividade de algumas expressões populares – aliás presente em todo o País – é a fonética. Os órgãos que articulam a fala dos portuenses são rigorosamente iguais aos de qualquer português. Contudo, talvez por influência de réstias de uma língua anterior ao galaico-português, no Porto os «b», por exemplo, são mais fortes e sobrepõem-se aos «v». Daí resulta o «binhu» (vinho), «barãnda» (varanda), «biána» (Viana) ou «bibu» (vivo).
Os ditongos «ão» ou «õe» são muito acentuados e prolongam-se mais do que em outras regiões. Para dizer limão, irmão, Bolhão ou cartão, um habitante do Grande Porto pode transformar um dissílabo num trissílabo ao acrescentar um «e» fechado e anasalado no final da palavra. A transcrição fonética permitiria entender este fenómeno em toda a sua extensão, mas não é perceptível pelo comum dos leitores, pelo que nos dispensamos de avançar aqui com um exercício quase académico.
É possível detectar fenómenos semelhantes em palavras como fonte ou morto. Um portuense de Miragaia ou da Sé – áreas onde se mantém com mais força este traço de identidade – acrescentará uma espécie de «u» antes dos «o» fechados de fonte e morto. No limite, uma palavra como ponte quase parecerá «põente», na boca de um residente na Bainharia.
E aqui temos uma outra faceta. Em palavras onde se encontram as palatais «lh», como telha ou palha, teremos «teilha» ou «pailha», como «beiju» para referir «vejo». Estes exemplos ilustram um modo de falar que tem vindo a perder-se, devido à influência normalizadora da televisão e da rádio. Ninguém espere, por isso, chegar ao Porto e tropeçar em portuenses que trocam os «b» pelos «v» e apresentam um sotaque muito cerrado e acentuado. Uma outra particularidade do falar do Porto, e nem sempre entendido para quem chega, é o modo descomplexado e até com sentido majorativo como são utilizadas palavras e expressões que noutros locais são tidos como grandes palavrões. Não é invulgar ouvir um amigo dizer a outro, dando-lhe uma palmada nas costas: «Anda cá, meu filho da puta…» Tal como não é uma coisa do outro mundo presenciar uma mãe a regalar-se com uma tropelia do filho, chamando-lhe carinhosamente «cabrão do caraças».
Este jeito singular de criar expressões estranhas, com frequência brejeiras, muito explorado nos bairros populares, não tem qualquer carga negativa e constitui, muitas vezes, um fator de socialização. Nas duas caixas inventariamos algumas frases e expressões idiomáticas utilizadas no Porto ou na sua área de influência. Como se vê, há uma preponderância de frases e termos que jamais teriam lugar no baile de debutantes do Clube Portuense. Algumas são inequivocamente do Porto, outras terão sido assimiladas, mas em nenhum lado são ditas como aqui. E é esse modo muito particular de dizer que faz com que se tornem propriedade da comunidade de falantes tripeiros.
Dicionário de tripeiro – Vocabulário
Aloquete – Cadeado
Azeiteiro – Aquele que vive à custa de prostitutas
Benha – Diz-se repetidas vezes, e é o grito de guerra dos arrumadores de carros para assinalar um lugar vago entre muitos outros disponíveis. É um «beinha» que prosaicamente significa «venha»
Botar – Pôr, deitar
Breca – Cãibra
Burgesso – Aquele que, além de burro, é teimoso
Canalha – Miúdos, catraios
Calcantes – Sapatos
Cimbalino – Café (em desuso)
Carago – Na verdade é caraças o que mais se utiliza para referir de forma metafórica o órgão sexual masculino
Cruzeta – Cabide
Chuço – Guarda-chuva
Estrugido – Refogado
Fino – Cerveja servida a copo
Infusa – Jarro
Moina – Polícia
Molete – Pão, carcaça
Mor – Termo utilizado pelas vendedeiras. Abreviatura de «amor»; forma carinhosa de chamar o cliente
Morcão – Palerma
Perseguida – Órgão sexual da mulher
Sameira – Cápsula de refrigerante
Vagem – Feijão verde
Dicionário de tripeiro – Expressões idiomáticas
Chá de Bico – Clister
Deu-lhe a filoxera – Desmaiou
Dar corda aos vitorinos – Andar rápido, fugir
Dói-me o garfeiro todo – Doem-me os dentes
Estar com os vitorinos encharcados – Estar bêbado
Estar de beiços – estar amuado
Falar ao microfone – O que é suposto Monica Lewinsky ter feito a Clinton e que o Presidente dos EUA alega não ter sido uma relação sexual
Foi fazer tijolos – Morreu
Foi medir caixotes – Morreu
Mandar uma traulitada direta à caixa dos fusíveis – Dar um murro nas ventas, quer dizer, no focinho, ou seja, na cabeça
Narizinho de cheiro ou de caticha – Diz-se de alguém que se ofende facilmente
Secou-se-lhe o céu da boca – Morreu
Vai no Batalha – Como quem diz: isso é filme; forma mais prosaica de dizer que é mentira
Vai à postura – Vai até à praça de taxi
Via de serventia – Expressão das mulheres do povo na sua relação com os ginecologistas
* Artigo publicado no semanário Expresso do dia 1 de Novembro de 1998.
Sobre o Autor
** Valdemar Cruz é jornalista do semanário “Expresso”.
Eh pá, tanto erro…
Azeiteiro é um parolo. É aquele que não tem qualquer ponta de estilo mas acha que é o suprassumo de tudo.
Quem vive á custa de prostitutas é o chulo.
Carago é apenas uma expressão idiomática. Caraças é uma versão mais light da mesma.
O “orgão sexual masculino” é o caralho.
E diz-se que quem quinou “foi fazer tijolo”. Singular s.f.f
E não se esqueçam que no Porto não se usa o ponto final. As frases terminam com o carago!