Tripeiros. Aos naturais ou residentes do Porto é aplicada, desde há séculos, a alcunha de “tripeiro”. Porquê? Porque come tripas, obviamente. De resto, entre a rica gastronomia da urbe, emerge como o seu prato mais emblemático e identitário as “tripas à moda do Porto”.
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A receita tradicional impõe que as tripas, de vitela, sejam bem limpas, esfregando-as com sal e limão, sendo depois cozidas em água e sal.
Mas este é, apenas, o início de um laborioso e apetitoso processo que, até à sua concepção final, fará juntar às tripas (os “folhos” e os “favos”) um conjunto muito significativo de outras carnes, nomeadamente mão de vitela, chouriça de carne, orelheira, salpicão, toucinho entremeado e frango. O manjar é, também, devidamente confeccionado com feijão de manteiga, cenouras e alguma cebola.
Salsa, sal, pimenta preta (moída na altura), louro e alguma banha garantem, mas também exigem, que se deixe apurar bem este prato. Fundamental, porque também se come com os olhos, é que seja servido numa bela terrina de barro, polvilhado com cominhos e salsa picada. E, também incontornável, que seja acompanhado por arroz branco seco.
É um prato delicioso. Mas, recorrendo às “tripas”, é também uma receita rara e sui generis que tem despertado a estranheza e a admiração de quem, vindo de fora da cidade, se depara com esta iguaria. Ora, tão exótico e singular prato tem que ter uma explicação. Nem que seja lendária. E é o que realmente acontece desde há muito tempo.
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Com efeito as tripas à moda do Porto possuem uma lenda e são, segundo essa narrativa tradicional, resultado do profundo envolvimento do burgo na expedição militar comandada pelo rei D. João I que, em 1415, conquistou a cidade norte-africana de Ceuta iniciando, assim, o processo da expansão marítima e colonial que caracterizaria o nosso país durante os séculos seguintes.
Lenda à parte, os acontecimentos históricos são relativamente bem conhecidos: rodeado de grande segredo, em 1414 o monarca decide organizar uma expedição a Ceuta com o objectivo de a conquistar.
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Precisava para isso de um armada poderosa, tendo incumbido dois dos seus filhos, os infantes D. Henrique e D. Pedro, para a organizar. D. Pedro deveria preparar embarcações no Tejo, enquanto Henrique teria que fazer o mesmo nos estaleiros do Douro.
Tripeiros, a sua origem
Há já 30 anos que o rei possuía uma relação muito privilegiada com o Porto e sabia que poderia contar com o auxílio da cidade. Na base desta relação encontrava-se, entre outros, o facto, não mais esquecido pelo monarca, do apoio dos burgueses portuenses ter sido decisivo na sua chegada ao trono durante a crise de 1383-85.
Aliás, reconhecido por tal auxílio, D. João I fizera questão de se casar no Porto com D. Filipa de Lencastre e de, posteriormente, aqui lhe nascer um dos seus filhos: Henrique, o mesmo que agora enviava, em missão secreta, a este burgo.
Não obstante desconhecerem qual o objectivo final da tarefa que o trazia ao Porto, e que durante o ano seguinte ocuparia uma boa parte da actividade da cidade, a chegada à urbe do jovem infante, então com cerca de vinte anos, foi muito festejada por toda a população, das classes mais modestas e populares – a “arraia miúda” – aos mais influentes mercadores e poderosos burgueses.
Além de ser filho do rei D. João, o facto de Henrique ser, também, natural do Porto, certamente contribuiu muito para esta forte empatia com as gentes da cidade. O Infante, nas palavras de Zurara na sua “Crónica da Tomada de Ceuta”, «era mui amado delles todos e o tinham casi por seu cidadaão».
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Embora ignorasse qual o destino final do numeroso número de embarcações que ia construindo nos estaleiros de Miragaia e do Ouro, todo o Porto se entregou de um modo muito significativo ao projecto.
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Além dos estaleiros junto ao Douro, também se envolveram nos trabalhos os cordoeiros do Campo do Olival (mais tarde conhecido por Cordoaria) manufacturando as cordas e cordoame necessários aos barcos, bem assim como os ferreiros da Ferraria de Baixo, junto a Miragaia, produzindo os apetrechos necessários às galés, naus, barcas e fustes que iam tomando forma nos estaleiros.
Outros confeccionavam os velames e, já nas periferias da cidade medieval, em terras da Maia, Gaia e Bouças (Matosinhos), outros havia que preparavam as provisões para uma numerosa frota que o Infante deu por concluída nos inícios de Junho de 1415. A armada zarpou da cidade no dia 10 desse mesmo mês e, à partida, era composta por mais de setenta navios «afora outra muita fustalha».
Poucos dias decorridos deu-se a junção com a frota organizada no Tejo pelo seu irmão e, revelado entretanto o objectivo da missão ao numeroso grupo de homens embarcados (vários milhares, entre os quais muitos portuenses) cerca de um mês depois consumava-se, com assinalável êxito, o assalto da cidade mourisca.
Mas, o que é que tudo isto tem a ver com as tripas? É aqui que entra a lenda. Segundo a tradição, o Porto, além de todo o trabalho na construção dos navios, forneceu também tudo o que tinha para os mantimentos da frota. Nomeadamente carne. Todas as viandas que possuía haviam sido limpas, salgadas e devidamente acamadas nas embarcações.
A cidade, sacrificada, ficara apenas com as miudezas, nomeadamente as “tripas”, e foi com elas que teve que inventar alternativas alimentares.
Surgia, assim, o prato das “tripas à moda do Porto” que acabaria por se perpetuar até aos nossos dias e tornar-se, ele próprio, num dos elementos mais característicos da cidade. De tal forma que, com ele, nascia também a alcunha de “tripeiro” para os habitantes do Porto.
Tripeiros, a sua origem
Trata-se, obviamente, de uma lenda. Mas tão profundamente enraizada na Memória Colectiva da cidade que, para muitos, se trata de uma verdade inquestionável. O próprio monumento em bronze que o Porto erigiu, em 1960, em memória da frota do Infante D. Henrique é disso mesmo sintomático.
Implantado junto aos antigos estaleiros do Ouro, no Largo António Cálem, esta escultura da autoria de Lagoa Henriques, que evoca a cidade “que lhe deu (à frota) navios, provisões e nela embarcou”, não deixa de representar, entre duas figuras humanas, uma peça de carne esventrada, lembrando que por aqui só restaram as tripas.
Trata-se de uma lenda. Evidentemente. As origens deste prato, tão complexo, são seguramente bem anteriores e implicaram um longo contexto cultural de aceitação e de prática culinária que não podemos restringir a um único e episódico acontecimento, a um verdadeiro epifenómeno, como foi o eventual esgotamento e desaparecimento de carne na cidade durante o curto espaço de tempo que coincidiu com os preparativos da armada de Ceuta e os meses que se lhe seguiram.
Trata-se de uma lenda. Mas, como todas, tem também o seu fundo de verdade. Ou, pelo menos, pode fornecer algumas pistas credíveis que importa valorizar. Neste caso o indiscutível empenhamento e sacrifício que a cidade fez para corresponder ao pedido de apoio de D. João I e do Infante D. Henrique nos preparativos do que viria a ser a arrancada da expansão marítima portuguesa.
Mas, qual será, afinal, a origem das “tripas à moda do Porto”?
É provável que tenhamos que recuar muito mais no tempo para descortinar a génese deste prato. Até ao século I a. C. E é possível que tenhamos que nos deslocar até à Suábia, uma região entre o Reno e o Danúbio, no sul da actual Alemanha, numa zona de contacto com a República Checa.
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Por essa época aí se localizavam tribos de um povo bárbaro designado por suevos, motivo pelo qual esta região é também apelidada por Suévia. Este povo confeccionava na sua dieta alimentar tripas (nomeadamente do estômago) das vacas.
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E, ainda hoje, tal como no Porto, tais pratos fazem parte da gastronomia tradicional da região (são as drzky, em checo). Ora, como se sabe, após a queda do Império Romano, os suevos atravessaram a Europa, passaram pela França (onde o “cassoulet” de Carcassonne, apesar de não ter tripas, é muito parecido em tudo o resto às “tripas do Porto”), cruzaram demoradamente o norte da Península Ibérica (onde ainda hoje são famosos os “callos asturianos”, confeccionados com as tripas do estômago de vitela e feijão, muito semelhantes ao prato portuense) e acabaram por se fixar no noroeste da Península, onde estabeleceram um reino, sendo o Porto uma das suas principais cidades, chegando mesmo a ser a capital.
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Desta forma as “tripas à moda do Porto” poderão remontar ao século VI e à época suévica. Ou será esta, na falta de estudos histórico-gastronómicos mais aprofundados, uma tese condenada a ser transformada, ainda que com uma faceta erudita e urbana, numa nova lenda?
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E a lenda continua…
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por Joel CLETO
Lendas do Porto: A Origem dos Tripeiros. O Tripeiro, 7ª série, vol. XXVII (7), Porto: Associação Comercial, 2008, p.210-211.
Lenda por lenda. Bula do papa no seculo XI: todos os lugares onde a armada ancorar em viagem para a terra santa, tudo o que precisarem deve ser fornecido.. do Porto levaram tudo o que era carne deixando as viceras.