No silêncio que antecede a tragédia, só André Marques parecia ouvir o rugido da máquina a perder o controlo. Sentiu a vibração metálica, os cabos a ceder, o peso desgovernado a arrastar-se pela linha abaixo. Os instantes que para todos foram pânico e desorientação, para ele foram lucidez absoluta. As mãos, habituadas ao gesto repetido de anos de serviço, correram sobre os comandos, acionaram travões, sistemas de segurança, redundâncias que aprendeu a dominar como quem conhece o pulso de um velho amigo. Cada tentativa era uma esperança, cada alavanca puxada um grito silencioso contra o destino.
Teve uma escolha: saltar, abandonar o posto, salvar-se. Mas não o fez. Ficou. Firmou os pés, manteve-se ao comando, com a consciência clara de que talvez não houvesse retorno. Não se moveu por instinto de sobrevivência, mas por um instinto maior — o de proteger vidas. Naquele breve instante que se eterniza na memória, André Marques deixou de ser apenas o guarda-freios da Glória. Tornou-se o rosto da coragem, o símbolo da entrega silenciosa, o herói que se manteve na linha mesmo sabendo que a sua história terminaria ali.
Lisboa chorará durante muito tempo este homem que, sem palavras, fez o maior dos gestos: morrer de pé, com a mão firme no comando, como quem ainda acreditava poder salvar o último sopro de esperança.
A história de um herói
A história de André Jorge Gonçalves Marques, carinhosamente chamado de “Tibi”, é feita de simplicidade, de entrega e de uma generosidade que marcou todos os que com ele se cruzaram. Mais do que o guarda-freios do Elevador da Glória, era um homem de família, amigo dos amigos e um filho dedicado à sua terra natal, Sarnadas de São Simão, em Oleiros.
Infância e raízes em Sarnadas de São Simão
Nascido e criado numa pequena aldeia com pouco mais de uma centena de habitantes, André cresceu rodeado de tradições, de gente humilde e de uma comunidade que sempre se apoiou mutuamente. Desde cedo aprendeu o valor do trabalho, da solidariedade e da proximidade com os outros.
Era presença assídua nas festas populares e nas atividades da aldeia, onde o seu sorriso fácil e a sua boa disposição faziam dele alguém estimado e respeitado. Quem o conheceu recorda-o como uma criança alegre, sempre disponível para ajudar, qualidade que se manteve ao longo da vida adulta.
Carreira na Carris: profissionalismo e paixão pelo ofício
André ingressou na Carris há 15 anos e rapidamente se destacou pela seriedade, pelo compromisso e pelo cuidado com os passageiros. Conduzir o emblemático Elevador da Glória, entre os Restauradores e o miradouro de São Pedro de Alcântara, era mais do que uma função: era uma missão que desempenhava com orgulho e dedicação.
Além de operar o ascensor, assumiu também a responsabilidade de formar novos guarda-freios, transmitindo conhecimento, paciência e paixão pela profissão. Colegas descrevem-no como um mentor natural, capaz de ensinar sem impor, sempre com uma palavra amiga e um espírito cooperante.
A sua humanidade ia muito além do uniforme. Em época natalícia, vestia-se de Pai Natal e conduzia o “Elétrico de Natal”, espalhando alegria por crianças e adultos, mostrando que o transporte público também pode ser feito de sorrisos e memórias.
O homem da família e da comunidade
Com 45 anos, André era pai dedicado de dois filhos menores, o seu maior orgulho. A vida familiar era para ele um porto seguro e a maior motivação para todos os dias se entregar ao trabalho com afinco. Apesar de viver em Lisboa, nunca rompeu os laços com a sua aldeia natal. Regressava regularmente a Sarnadas de São Simão para visitar a mãe e a irmã, participando nas tradições locais e mantendo-se próximo dos vizinhos que o viam como “um filho da terra”. Para muitos, era alguém sempre disposto a ajudar, sobretudo os mais idosos, seja com uma palavra de conforto, um gesto prático ou simplesmente um sorriso que iluminava os dias.
Uma perda que se transformou em homenagem
A sua morte, na sequência do descarrilamento do Elevador da Glória, deixou uma ferida profunda no coração dos lisboetas e dos habitantes da sua terra natal. O choque foi tal que não se limitou às comunidades que com ele conviveram: estendeu-se a todo o país, que reconheceu em André Marques o símbolo de um trabalhador dedicado e de um homem de caráter irrepreensível.
No funeral, em Sarnadas de São Simão, a pequena aldeia viu-se incapaz de conter tanta dor e tanta gente. Entre anónimos, familiares, colegas, amigos e figuras de Estado, todos se uniram para lhe prestar a última homenagem.
Como gesto de reconhecimento eterno, a Carris anunciou que um dos novos elétricos articulados da sua frota passará a ostentar o nome “André Marques” — perpetuando a memória do guarda-freios nas ruas de Lisboa e transformando-o num símbolo vivo da cidade que serviu com tanto carinho.
O legado de um homem inesquecível
André Marques será lembrado pela sua dedicação ao trabalho, pela forma calorosa como tratava todos os que cruzavam o seu caminho, e pelo amor que sempre demonstrou à família e à sua terra.
A sua história é, acima de tudo, um testemunho de como uma vida simples, feita de gestos de proximidade, pode deixar uma marca indelével na comunidade e tornar-se um exemplo para gerações futuras.