Imagine que vai ao multibanco levantar cinquenta euros e, por um defeito, a máquina cospe cem — duas notas de cinquenta caem-lhe nas mãos e o silêncio da rua parece gritar: fica com o dinheiro ou devolve? Esta cena surreal já aconteceu em Portugal e a resposta imediata que tomar pode transformar um “prémio inesperado” numa dor de cabeça jurídica e financeira.
Quando o multibanco se engana: não é sorte, é erro
Os caixas automáticos são máquinas extraordinariamente fiáveis, mas não infalíveis.
As falhas podem ocorrer por: problemas mecânicos no dispensador, erros de software, carregamento incorreto das gavetas ou até falhas humanas durante a reposição do numerário.
Nessas situações, o utilizador pode receber mais (ou menos) do que pediu, mas há uma diferença crucial entre aparência e propriedade: o dinheiro que recebeu a mais não lhe pertence legalmente.
O que diz a lei e quais são os riscos
Receber e conservar deliberadamente notas que saíram a mais caracteriza, na prática, enriquecimento ilícito. Os bancos detetam rapidamente discrepâncias — cada operação fica registada digitalmente e cada gaveta tem sensores que contabilizam as notas.
Quando o sistema indica uma diferença, segue-se a reconciliação diária e a identificação das operações anómalas.
Se não devolver, o banco pode obrigar à restituição por via civil e até encaminhar a situação para o Ministério Público por crimes como apropriação indevida.
Há precedentes em vários países (e também em Portugal) de pessoas que viram chegar processos judiciais e sanções.
Como os bancos descobrem sempre
- Registos eletrónicos de cada operação;
- Sensores nas gavetas que contam cédulas carregadas e dispensadas;
- CCTV do multibanco que grava o utilizador e o momento da operação;
- Reconciliação diária entre o numerário físico e os registos do sistema.
Ou seja: o “erro” fica documentado, e normalmente é uma questão de tempo até ser localizado e acompanhado de um pedido formal de devolução.
O que deve (e não deve) fazer se lhe acontecer
- Guarde imediatamente o talão da operação — é a prova mais valiosa.
- Não gaste o dinheiro. Gastar o valor recebido a mais pode ser visto como intenção de apropriação.
- Fotografe a caixa e as notas (se for possível fazê-lo sem violar regras do local) e registe a identificação do ATM (normalmente indicada no equipamento).
- Contacte o banco no próprio dia — telefone de apoio ao cliente ou balcão presencial — e relate o sucedido com calma.
- Se a resposta não for satisfatória, registe reclamação formal por escrito e, se necessário, recorra à entidade de supervisão (por exemplo, Banco de Portugal) ou procure aconselhamento jurídico.
- Conserve provas: mensagens trocadas com o banco, registos de chamadas, número dos protocolos e nomes dos interlocutores.
Seguir estes passos reduz o risco de complicações futuras e mostra boa-fé — um fator que conta muito caso a situação evolua para processo administrativo ou judicial.
E se a máquina der menos do que devia?
O procedimento é o inverso: guarde o talão, não abandone imediatamente a caixa (anote hora e local), contacte o banco e peça regularização. As instituições costumam apurar e repor montantes em curto prazo quando a falha foi do ATM.
Exemplos e lições práticas
Há casos documentados — nacionais e internacionais — em que pessoas traficaram “felicidade momentânea” e depois enfrentaram processos ou acordos forçados para restituir montantes, explica a Leak.
Do outro lado, utilizadores que devolveram imediatamente foram tratados de forma favorável e evitam qualquer escalada. A lição é clara: o instinto de “fazer um bom negócio” raramente compensa quando a vantagem vem à custa da ilicitude.
Ética e bom senso: mais do que uma obrigação legal
Além do risco jurídico, há um imperativo ético. O montante que saiu a mais pertence ao titular da conta e à instituição. Devolver é um acto de cidadania que evita drama, incómodos e possíveis acusações. Demonstrar boa-fé tem peso nas perceções — e, muitas vezes, nos procedimentos que o banco seguirá posteriormente.
Receber notas a mais pode parecer um presente do acaso, mas, na realidade, é uma encruzilhada: um gesto rápido pode evitar meses de problemas. Agir com transparência e responsabilidade protege legalmente e moralmente — e, no fim, é sempre a solução mais humana.
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