Em 1806, foi inaugurada no Porto a icónica Ponte das Barcas, uma obra que, para a época, representava um feito de engenharia inovador. Constituída por 33 barcas ligadas entre si e ao tabuleiro da ponte por cabos de aço, esta construção era vista como uma solução robusta e segura. Embora hoje possa parecer uma abordagem rudimentar, à data era a melhor alternativa disponível e uma evolução considerável face às pontes que anteriormente existiam no local.
Apesar de não ser uma travessia acessível a todos, devido aos custos aplicados, a Ponte das Barcas tornou-se rapidamente numa peça essencial para o quotidiano dos portuenses.
Cada peão pagava 5 réis para atravessar, um cavaleiro desembolsava 20, um carro de bois custava 40 e uma carruagem, 160 réis. Embora houvesse queixas sobre o preço, a ponte foi amplamente utilizada e integrada no dia-a-dia da cidade, até que um evento trágico mudou para sempre a sua história.
A segunda invasão francesa e o dia da tragédia
No início de março de 1809, um exército francês liderado pelo general Soult atravessou a fronteira de Chaves, dando início à Segunda Invasão Francesa. Ao contrário da primeira invasão, que culminou na ocupação de Lisboa, desta vez o objetivo era a cidade do Porto. A 16 de março, as tropas francesas conquistaram uma vitória estratégica próxima de Braga e, no dia 29, chegaram ao Porto, que se encontrava mal defendido.
A chegada dos invasores provocou o pânico entre a população, que tentou desesperadamente fugir para Gaia, onde algumas tropas portuguesas resistiam ao avanço francês. Para isso, recorreram à Ponte das Barcas, que, embora parecesse robusta, não suportou o peso da multidão e colapsou.
O resultado foi catastrófico: milhares de pessoas caíram ao rio Douro. Esta era uma época em que a maioria das pessoas não sabia nadar, incluindo marinheiros e pescadores, o que agravou ainda mais a tragédia.
Os relatos divergem sobre o número de vítimas. Algumas fontes apontam para 4 mil mortos, enquanto outras estimam entre 400 e até 20 mil. O que é certo é que este foi um dos episódios mais negros da história da cidade.
Luísa Todi e o drama pessoal
Entre os que testemunharam a tragédia estava Luísa Todi, a famosa cantora lírica de Setúbal, reconhecida internacionalmente pela sua brilhante carreira. No dia da invasão, Luísa tentou escapar com os filhos, levando consigo dinheiro e joias.
Dirigiu-se à Ribeira para procurar um barqueiro que os ajudasse a fugir. Contudo, durante a confusão, a sua filha foi atingida no joelho por uma bala. Ao tentar socorrê-la, Luísa caiu ao Douro, sendo salva apenas pela intervenção da sua empregada, que lhe estendeu um remo.
Encharcada e ainda em choque, dirigiu-se a um oficial francês e, num francês perfeito, apresentou-se e pediu ajuda para salvar a filha. A coragem e a dignidade de Luísa impressionaram o oficial, que a acompanhou até Soult. Segundo a VortexMag, o general francês tratou-a com deferência, providenciando cuidados à filha e garantindo a segurança da família. No entanto, enquanto subiam a rua com o oficial, ouviram o estrondo que marcou o colapso da ponte, seguido pelos gritos de milhares de pessoas.
As consequências e a memória da tragédia
A tragédia abalou profundamente a cidade. Soult, ao tomar consciência do desastre, tentou mitigar o sofrimento da população. Ordenou que os seus soldados não pilhassem residências, lojas ou igrejas e organizou a distribuição de sopa aos mais necessitados. Ainda assim, a ocupação foi marcada por sofrimento e perdas.
Dois meses depois, a 12 de maio, tropas portuguesas e inglesas conseguiram expulsar os franceses do Porto, forçando-os a recuar até à fronteira de Montalegre. Apesar da vitória, as cicatrizes da tragédia da Ponte das Barcas permaneceram na memória coletiva.
A comemoração e o legado
Desde 1897, uma lápide na Ribeira recorda as vítimas desta tragédia. Todos os dias, velas são acesas em homenagem aos que perderam a vida naquele dia fatídico. Em 2009, no bicentenário da tragédia, foi inaugurado um novo monumento, da autoria de Souto Moura, que perpetua a memória deste evento.
A Tragédia da Ponte das Barcas é um lembrete poderoso da resiliência do povo do Porto e um marco importante na história de Portugal. O monumento e as homenagens diárias asseguram que este episódio nunca será esquecido.