A recente sucessão papal voltou a lançar luz sobre um tema que, há décadas, clama por transparência: os salários e benefícios atribuídos às várias camadas da hierarquia eclesiástica no diminuto, porém influente, Estado da Cidade do Vaticano. Ao passo que a morte do Papa Francisco deu início a um ritual ancestral de escolha de novo Pontífice, o olhar do público voltou-se para os cofres da Santa Sé — e encontrou desigualdades que custam a conciliar com os ideais de pobreza e simplicidade que se pregam nos púlpitos.
Cardeais no topo: mais do quíntuplo do salário mínimo português
Segundo dados divulgados pela BBC, os cardeais que exercem funções na cúria romana recebem entre 4 000 e 5 000 euros mensais. Para um leitor em Portugal, onde o salário mínimo bruto atingiu recentemente os 870 euros, estes números soam quase chocantes: um único dignitário vaticano auferia, em apenas um mês, mais do que cinco vezes o rendimento mínimo de um trabalhador nacional.
Em abril de 2021, sob a pressão das contas deficitárias exacerbadas pela pandemia, o próprio Papa Francisco ordenou um corte de 10 % nos vencimentos dos cardeais. A decisão visava proteger os empregos dos funcionários laicos e assegurar o equilíbrio orçamental do ministério central da Igreja. Todavia, mesmo após a redução, estes altos prelados continuaram a desfrutar de uma remuneração incomparavelmente superior à esmagadora maioria dos colaboradores da Santa Sé.
Os benefícios que acompanhavam o crucifixo
O salário, porém, é apenas a ponta do iceberg. Os cardeais beneficiam de uma panóplia de privilégios que reforçam a sua estabilidade financeira:
- Residências subsidiadas no próprio Vaticano ou em imóveis selecionados de Roma;
- Assistência médica integral, sem qualquer custo direto;
- Acesso a lojas e cantinas a preços reduzidos;
- Viagens protocolares custeadas pela instituição;
- Isenções fiscais sobre algumas arrecadações e honorários.
Tais regalias contrariam frontalmente o ideal de pobreza evangélica que, historicamente, tem sido um dos pilares do ensino católico.
Hierarquia salarial dentro da Santa Sé
No outro extremo da escala, os cerca de 5 000 funcionários laicos — técnicos, administrativos, seguranças, motoristas e pessoal de manutenção — recebem entre 1 200 e 3 000 euros mensais, conforme a categoria e a antiguidade. Entre este contingente e os cardeais, situam-se os bispos e sacerdotes da Roma oficial, com salários na casa dos 1 500 a 2 500 euros.
Este escalonamento reflete uma rígida hierarquia: nem sempre espiritual, frequentemente marcada por benefícios materiais. Quem serve a fé em classes superiores tem acesso a recursos que o simples devoto ou o funcionário secular jamais conhecerá. É esta distância — entre votos de humildade e realidades financeiras — que gera perplexidade e críticas cada vez mais vocalizadas pela opinião pública.
Comparação com Portugal: um choque de realidades
Em Portugal, um trabalhador com ordenado mínimo precisa de trabalhar cinco meses para receber o que um cardeal aufere num único. Mesmo um responsável laico bem posicionado no Estado vaticano ganha mais do triplo do rendimento mínimo nacional. Em tempos de elevadas desigualdades, austeridade e debates acalorados sobre justiça salarial, tais disparidades soam, no mínimo, contraditórias.
O desafio da transparência e da coerência
O pontificado de Francisco foi marcado por apelos à reforma, ao combate à corrupção interna e ao regresso a uma Igreja mais próxima dos pobres. O anúncio do corte nos salários há dois anos foi celebrado como um sinal de mudança.
No entanto, com o Papa afastado por força da sucessão, regressa o escrutínio: estarão os novos líderes dispostos a aprofundar essa reforma? Ou voltaremos ao silêncio da reserva financeira, embalado em desculpas históricas e culturais? A sociedade contemporânea exige, cada vez mais, instituições que admitam a sua dimensão humana — com virtudes, mas também com falhas — e assumam, de forma clara, as suas escolhas orçamentais. Se a Igreja Católica continua a reclamar autoridade moral, tem também o dever de mostrar que vive, na prática, os valores que prega.
Conclusão
A abertura do debate sobre rendimentos no Vaticano serve de alerta para todos: fé e finanças não precisam de ser excludentes, mas devem caminhar lado a lado na coerência de quem ensina a simplicidade e a partilha. Enquanto a nova era papal se desenha, fica a pergunta no ar: será este o momento de a Santa Sé alinhar os seus cofres com os seus princípios?
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