Se já visitou o Palácio da Ajuda, em Lisboa, provavelmente reparou na curiosa disparidade entre a sua fachada majestosa e as traseiras inacabadas, que contrastam com o esplendor da frente. Contudo, o que pode parecer ainda mais peculiar é a presença de uma monumental torre do relógio, encimada por um galo de ferro forjado, que parece deslocada no espaço, rodeada por um parque de estacionamento. Esta singularidade, porém, está profundamente enraizada num dos episódios mais traumáticos da história de Portugal: o terramoto de 1755 e a peculiar reação do rei D. José I ao desastre.
O grande terramoto de 1755: a tragédia que mudou Lisboa
Na manhã de 1 de novembro de 1755, Dia de Todos os Santos, Lisboa, então uma vibrante cidade medieval, preparava-se para um dia de celebrações religiosas.
Sem aviso, um violento sismo abalou a capital, destruindo três quartos da sua área e causando uma devastação sem precedentes. À destruição causada pelo tremor de terra seguiram-se um tsunami que submergiu vastas zonas da cidade e incêndios que consumiram o que restava em pé.
A magnitude da tragédia gerou pânico entre os habitantes, que temiam novas réplicas e viam o evento como um castigo divino. Muitos fugiram da cidade, enquanto a Família Real, por coincidência, se encontrava em Belém – uma zona menos afetada pelo terramoto.
Embora escapassem ilesos fisicamente, o trauma emocional foi profundo, especialmente para o rei D. José I, que declarou nunca mais querer dormir numa estrutura de alvenaria.
A real barraca da Ajuda: um palácio de madeira para um rei traumatizado
Cumprindo a promessa feita a si próprio, o rei ordenou a construção de uma residência inteiramente em madeira, na zona da Ajuda, num terreno adquirido pelo seu pai, D. João V.
Este local ficou conhecido como a Real Barraca da Ajuda, onde foram instalados bens preciosos resgatados de outros palácios reais.
Apesar do nome modesto, a Real Barraca não era de forma alguma simples. Projetada pelos melhores arquitetos da época, como Veríssimo Jorge, Mazone e Petrone, a estrutura foi concebida com luxo e elegância, rivalizando com os grandes palácios europeus.
Rodeada pelo primeiro jardim botânico de Lisboa e equipada com uma capela em madeira, tornou-se o centro da vida da corte até à morte de D. José I, em 1777.
A torre do galo: um vestígio solitário
A Real Barraca era, contudo, uma construção temporária e começou a deteriorar-se com o tempo. Um incêndio em 1794 destruiu completamente a estrutura de madeira, deixando intacta apenas a torre sineira da Capela Real – a única construção em pedra do conjunto.
Hoje conhecida como Torre do Galo, esta estrutura, com os seus oito sinos e o emblemático catavento em forma de galo, é um dos últimos vestígios desse período único na história de Portugal.
A torre, projetada por Manuel Caetano de Sousa, desempenhou um papel essencial como parte da Capela Real, que serviu como Patriarcal de Lisboa até 1833, antes de esta função ser transferida para a Sé.
Embora a capela tenha sido demolida no século XIX, a torre permaneceu, e a sua arquitetura grandiosa, semelhante à das torres dos Palácios de Mafra e das Necessidades, destaca-se no Bairro da Ajuda como um elemento marcante da paisagem.
O palácio nacional da Ajuda: um sonho inacabado
Com o incêndio da Real Barraca, surgiram planos para a construção de um novo palácio de pedra no mesmo local. Assim nasceu o Palácio Nacional da Ajuda, cuja construção começou em 1795.
No entanto, segundo a VortexMag, o edifício nunca foi totalmente concluído, devido a mudanças políticas e económicas que marcaram o século XIX. A sua imponente fachada contrasta com as traseiras por terminar, uma memória física das dificuldades e interrupções do projeto.
Curiosidades e reflexão
A Torre do Galo, aparentemente deslocada, é um testemunho de resiliência e adaptação num período de crise. Mais do que um simples vestígio arquitetónico, é um símbolo do impacto profundo do terramoto de 1755 na história, na mentalidade e até na arquitetura de Lisboa. Quando visitar o Palácio da Ajuda, reserve um momento para admirar esta torre peculiar e recordar como a cidade renasceu das cinzas, transformando o medo em novas oportunidades.
Que outras histórias escondem as ruas de Lisboa? É algo para se explorar…