Será que o português do Brasil já se distanciou tanto dos primos ibéricos (galego e português de Portugal) que merece um novo nome?

No Facebook, numa partilha deste artigo em que critico a aversão aberta ao português do Brasil, alguém opta por chamar abertamente «xenofobia» a essa aversão.
Um outro comentador discorda, dizendo (negrito meu):
Talvez a pessoa que utilizou essa palavra nao a tenha aplicado com o sentido de xenofobia… talvez esteja revoltada pelo facto do português brazil estar a tomar conta do verdadeiro português… talvez porque hoje em dia vem tudo PTbr e não em PTpt….talvez a parte do acordo ortográfico que aproxima mais o português do português br…. enfim… coisas que nao deviam ser assim pois o português é de Portugal….
Parece-me ser este um caso do «erro de confirmação». A pessoa acha que hoje em dia vem tudo em português do Brasil. Ora, os programas de televisão infantis são praticamente todos dobrados em português de Portugal. Já é raro vermos produtos em português do Brasil. Nem as telenovelas são hoje brasileiras (pelo menos, na sua maioria). Quanto à língua em si, estamos cada vez mais afastados uns dos outros no que importa (com ou sem acordos). Ou seja, não estamos a ser invadidos.
Mas, claro, quem acredita nisso vai olhar apenas para o que confirma a sua crença: se encontrar um produto que seja com embalagem em «brasileiro», pronto, está o caldo entornado.
Adiante. O mais curioso do comentário é essa ideia do «verdadeiro português»… Parece ser natural aos portugueses achar que o português verdadeiro é nosso e os brasileiros falam uma língua menor, um português falso.
Por exemplo, ainda há uns dias, na TVI, ouvi dizer que Carlos do Carmo pôs uma plateia do Rio de Janeiro a cantar em português. Foi preciso um fadista para pôr os cariocas a cantar na sua própria língua? É isso? Segundos depois, a jornalista diz alto e bom som que «Carlos do Carmo ensina a cantar em bom português.» Percebi, então. Os brasileiros falam português, mas falam mal.
As coisas são um pouco menos fáceis do que pensamos. Nem os portugueses inventaram, um lindo dia, a língua portuguesa, nem os brasileiros passaram a falar uma língua estrangeira no dia em que declararam a independência.
Primeiro, a língua que Estado português adoptou já existia, embora sem nome nem identidade própria (como aprendi na aula de Fernando Venâncio de que vos falei há tempos). Da mesma forma, a língua que o Estado brasileiro adoptou já existia. Neste caso, a língua já tinha nome — nome que o Brasil decidiu manter, sem que daí viesse mal ao mundo.
Como em tudo na vida, as coisas são como são e o português de lá e o português de cá foram mudando. Nenhum deles se deturpou e nenhum deles se manteve puro e imaculado. Mudámos todos. Uma coisa parece-me certa — dificilmente as várias variantes do português se aproximarão de novo, naquilo que de facto importa: o vocabulário, as expressões, a sensação de comunidade linguística.
Dito isto, faz-me imensa confusão essa recusa mental de muitos portugueses em ler e ouvir português do Brasil. Continuamos a poder ler qualquer texto brasileiro sem grandes dificuldades, o que me parece de aproveitar — tal como também é de aproveitar a invisível proximidade com o galego. Não nos limitemos tanto. Convém ter força e ser um pouco menos tribal, mesmo que o tribalismo linguístico seja algo tão natural como a guerra.
Agora, a pergunta final: será que o português do Brasil já se distanciou tanto dos primos ibéricos (galego e português de Portugal) que merece um novo nome? É uma bela discussão e não sei o que acontecerá nas próximas décadas. Mas, para já, os brasileiros chamam à sua língua «português» e nós não nos devíamos incomodar tanto com isso.
Sim, a língua em que a plateia de Carlos do Carmo cantou foi português: a sua própria língua, vejam lá.
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
Saiba mais nesta página.
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Puxa, que ótimo texto!
Apenas para complementar, o português de Portugal seguiu se curso e continuou a evoluir após o descobrimento do Brasil.
O mesmo não se deu por aqui. Esse processo de evolução ficou estagnado, de modo que, em linhas gerais, o português do Brasil ficou por muito tempo bem mais próximo do português que se falava em Portugal no início do século XVI (o que é curioso, se imaginarmos que o português falado por Camões estaria muito mais próximo do português do Brasil do que do de Portugal hoje, por exemplo)..
Essa diferença já não era tão abrupta no sudeste do Brasil, principalmente no Rio de Janeiro, que foi sede do Império Português com a vinda da família real, o que tornou o contacto com Lisboa mais recorrente, e também sofreu reflexos da evolução da língua em Portugal..
Quanto ao interior do Brasil, do mesmo modo que em Portugal a língua recebia influências do galego e do espanhol, por aqui recebia influências de línguas indígenas como o Tupi e o Guarani, grande parte por estratégia dos padres jesuítas que tentavam integrar essas línguas ao português para facilitar a catequese dos índios..
Enfim, por mais que hajam diferenças, nossas raízes são as mesmas e isso é realmente maravilhoso.
Abraços fraternais!
Este é um assunto sem um fim específico. A ortografia e a fonética seguem rumos distintos, variando de valores culturais sobremaneira.Li que no Porto fala-se diferente de Lisboa …sim , pode ser, e tem valor tal obviedade, justamente pelas características intrínsecas a história do seu povo , tal como ocorre no Brasil , país colonizado ,no tempo , por povos distintos e agregado por imigrantes das várias partes da Terra.A língua que se fala é a linguagem absorvida na passagem do tempo.Parabens aos países lusófonos, parabéns ao idioma português!
É um texto interessante. E ouso em acrescentar que, no Brasil, sofremos influências diferentes, o que resulta em certas diferenças entre o falar português e brasileiro. Todavia, isto não torna a língua praticada nesses dois lugares diferente. Para quem acha que, no Brasil, falamos um sub-português ou não falamos mais portugês etc, digo que se o nome do idioma fosse Brasileiro, algum brasileiro diria que em Portugal falar-se-ia uma falsa língua.