Portugal é frequentemente recordado como um país de “brandos costumes,” mas a nossa história revela também momentos de profunda violência, intolerância e tragédias que não nos deixam orgulho. Um dos episódios mais sombrios da nossa pátria é o Massacre de Lisboa, ocorrido em abril de 1506. Este massacre é uma ferida na nossa história e um lembrete das consequências do fanatismo e da intolerância religiosa, desencadeados pelo medo e pela ignorância.
O contexto: domingo de Pascoela e o “milagre” na capela de S. Domingos
Era o dia 19 de abril de 1506, um domingo de Pascoela – o domingo a seguir à Páscoa, um dia que deveria ser de celebração cristã. Aconteceu então algo que a multidão presente na capela do Convento de São Domingos considerou milagroso: um brilho intenso foi visto no crucifixo da capela, interpretado como um sinal divino. O boato de que se tratava de uma intervenção divina espalhou-se rapidamente por Lisboa, levando um grande número de fiéis a acorrerem à igreja, ansiosos por testemunhar o que acreditavam ser um milagre.
Contudo, alguém observou o fenômeno com outros olhos e explicou que o brilho no crucifixo não era milagre, mas sim o reflexo de uma candeia que incidia sobre a figura sagrada. Esta pessoa, alegadamente um cristão-novo (um judeu convertido ao cristianismo), despertou a fúria da multidão que o considerou blasfemo e uma ameaça à fé cristã. Num momento de descontrolo, a multidão arrastou-o para o exterior da capela, onde foi brutalmente agredido e morto.
O estopim de uma tragédia sangrenta
Este ato de violência desencadeou uma onda de fúria coletiva. Dois frades presentes no local aproveitaram a agitação para incitar a multidão contra os cristãos-novos, acusando-os de heresia e de serem culpados pela falta de fé e pelos infortúnios que assombravam a cidade. Estes cristãos-novos, que em tempos haviam sido judeus, foram forçados à conversão pela coroa portuguesa anos antes, depois da expulsão dos judeus de Espanha no final do século XV. Eram pessoas que viviam sob uma identidade religiosa imposta e eram alvo de desconfiança e ressentimento.
Durante os três dias seguintes, multidões descontroladas, que incluíam também marinheiros estrangeiros que se juntaram ao caos, percorriam as ruas de Lisboa num frenesi de violência. A ordem pública desapareceu, e iniciou-se uma perseguição implacável, na qual qualquer pessoa suspeita de ser cristão-novo era atacada. As casas foram invadidas e saqueadas, as ruas transformadas em campos de execução e o sangue dos inocentes manchou o chão da cidade.
O ambiente de desconfiança e o papel das calamidades naturais
A desconfiança contra os cristãos-novos foi sendo alimentada por um conjunto de tensões sociais, religiosas e políticas que se intensificaram com as dificuldades do país. Nessa altura, Portugal enfrentava uma seca severa e uma epidemia de peste em Lisboa, fatores que criaram um clima de medo e desespero entre o povo. Desconhecendo as verdadeiras causas dessas desgraças naturais, a população viu nos cristãos-novos um alvo fácil para as suas frustrações e receios, atribuindo-lhes a responsabilidade pelas adversidades que enfrentavam.
A falta de presença da realeza e das autoridades aumentou a gravidade da situação. O rei D. Manuel I e a sua corte estavam fora de Lisboa, o que facilitou a desordem, e a cidade ficou temporariamente sem liderança para pôr fim à violência.
O massacre e o alto número de vítimas
Segundo cronistas como Garcia de Resende e Damião de Góis, o número de vítimas do Massacre de Lisboa pode ter ultrapassado os 4.000 mortos, embora este número possa variar dependendo das fontes históricas. Portugal, que até então não havia tido uma tradição de perseguição ativa aos judeus, viu-se num momento de brutal intolerância, semelhante aos que ocorriam noutras partes da Europa.
Este massacre representou uma catástrofe sem precedentes em Lisboa e deixou uma marca na nossa história. Na terça-feira, ao fim de três dias, a fúria começou a acalmar, não tanto pela intervenção das autoridades, mas pela ausência de alvos, pois muitos cristãos-novos conseguiram fugir, auxiliados por algumas pessoas que se opunham a tais atos bárbaros.
Consequências e justiça tardia
Quando o rei D. Manuel I tomou conhecimento do ocorrido, decretou a prisão e a execução dos principais responsáveis, incluindo os frades que instigaram a matança. Os bens dos implicados foram confiscados, e a cidade de Lisboa sofreu sanções, com a suspensão temporária de alguns dos seus privilégios.
No entanto, o impacto deste massacre acabou por ser ofuscado nos anos seguintes, especialmente com a introdução da Inquisição em Portugal três décadas depois. Com a Inquisição, Portugal passou a adotar uma política de vigilância ativa contra heresias e qualquer desvio à ortodoxia católica, o que contribuiu para o esquecimento deste episódio sombrio.
Memória e homenagem às vítimas
O Massacre de Lisboa permaneceu como uma página esquecida da história até ao século XX. Em 2006, na passagem dos 500 anos do evento, foi erguido um memorial em homenagem às vítimas, localizado próximo do Convento de São Domingos, o local onde a tragédia teve início. Este memorial serve para recordar as vidas perdidas e as injustiças cometidas, funcionando também como um alerta para as consequências da intolerância.
A tragédia do Massacre de Lisboa é também o cenário de obras literárias que nos ajudam a entender melhor este período conturbado, conforme refere a VortexMag. O romance O Último Cabalista de Lisboa, do autor luso-americano Richard Zimler, transporta-nos para esses dias sombrios e permite-nos refletir sobre as complexas relações religiosas e sociais da época.
Este episódio sombrio da nossa história serve de lembrança da necessidade de tolerância e compreensão entre diferentes culturas e crenças. É importante que a memória do Massacre de Lisboa seja preservada, não apenas como um tributo às vítimas, mas também como um alerta para que nunca mais se repitam tragédias semelhantes.