Há até um aumento das opções de vocabulário e não há facilidade em usar “o comer” em vez de “a comida”. «O comer está na mesa» é erro de português?
«O comer está na mesa» é erro de português?
Há muitas pessoas que não gostam de ouvir a expressão “o comer“.
Estão, obviamente, no seu direito. Aliás, convém perceber que a expressão não é nada bem-vista em certos círculos sociais e incentivar o seu uso pode levar a situações embaraçosas. É uma questão de etiqueta — e todos sabemos como, muitas vezes, a etiqueta é irracional e importante.
A questão é outra: quem não gosta da expressão acusa quem a usa de estar a cometer um erro de português. Ora, na realidade, o prevaricador estará, no máximo, a cometer um erro social, mas não um erro linguístico.
“Então mas ‘comer’ é um verbo: não podemos usar como substantivo!”
Não só nada impede as palavras de saltarem classes gramaticais, como esse fenómeno é muito comum, sem levantar qualquer questão. Reparem nas frases:
– “O saber não ocupa lugar.”
– “O teu olhar é lindo.”
“Saber” e “olhar” são verbos transformados em substantivos — tal como “comer” na expressão “o comer está na mesa”.
“Tudo bem, mas se temos a expressão ‘a comida’, é um erro inventar outra expressão para dizer a mesma coisa.”
A língua tem muitos casos de sinónimos ou palavras de significado parecido. “Saber” também tem significado semelhante a “sabedoria” e ninguém se importa. Por que razão havemos de impedir o uso de palavras só porque existem outras palavras com significado parecido? Teríamos de apagar dos dicionários imensas palavras (quase todas).
“Está errado e pronto! E cada vez oiço mais, infelizmente!”
O que acontece não é que cada vez se oiça mais esta expressão: há é cada vez mais contacto entre vários grupos sociais e, assim, todos estamos mais expostos à variação linguística — que, na realidade, tem vindo a diminuir ao longo das últimas décadas, devido à maior escolarização e a esses maiores contactos sociais.
Quanto a dizer que está errado e pronto, é uma estratégia habitual no comentário aos usos linguísticos dos outros. Mas é uma estratégia, esta sim, errada. Uma coisa é o gosto pessoal de cada um e ninguém é obrigado a gostar desta ou daquela expressão (ou desta ou daquela pessoa) — outra coisa é apontar o dedo a um suposto erro de português só porque sim.
“Só mostra o facilitismo que grassa por aí!”
A acusação de facilitismo nos debates linguísticos é muito… facilitista. Neste caso, não há qualquer facilidade em usar “o comer” em vez de “a comida”. Há até um aumento das opções em termos de vocabulário, com uma maior dificuldade na escolha…
“Então porque tanta gente diz que está errado?”
Não sei explicar, mas tenho uma teoria: há expressões que ferem os ouvidos de algumas pessoas, como “funeral”, “vermelho” e outras que tais, por serem, supostamente, sinais de uma certa origem social. Ora, no caso de “o comer”, quem tem esta sensibilidade demasiado apurada encontrou alguns pseudo-argumentos linguísticos contra o uso da expressão.
Esses argumentos e ideias espalharam-se através de conversas, comentários, etc. — e acabámos por ter de lidar com o mito de que “o comer” é um erro linguístico. Não é um erro linguístico: é, como disse acima, um possível erro social, se a expressão for usada em meios sociais que a abominam.
Por isso, vamos todos respirar fundo. “O comer” não faz mal a ninguém. Pode ser, apenas, um pouco desagradável, por falta de hábito de quem ouve. Pode também ser um erro social. Não não é um erro de português.
Tratem da fama e do comer,
Que amanhã é dos loucos de hoje!
— Álvaro de Campos, “Gazetilha”
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
NCultura
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Gostei, e pronto.