Na primavera de 1846, algo inesperado marcou a história de Portugal: um protesto conduzido por mulheres no Minho, liderado por Maria da Fonte, tornou-se o catalisador de uma revolta que abalou o regime de Costa Cabral. Armadas de foices e gadanhas, estas mulheres não apenas desafiariam uma lei controversa, mas também lançariam o país num ciclo de revoltas que culminaria na guerra civil da Patuleia.
A origem da revolta: a “Lei da Saúde” e o protesto em Santo André dos Frades
O rastilho da revolta acendeu-se na pequena aldeia de Santo André dos Frades, no Minho. Em março de 1846, um grupo de mulheres levantou-se contra a recém-criada “Lei da Saúde”, que proibia o enterro de mortos no interior das igrejas.
Para estas comunidades profundamente religiosas, a lei não era apenas uma questão de higiene pública, como alegavam as autoridades; era uma afronta às tradições e à memória dos seus entes queridos.
As mulheres, muitas delas trabalhadoras do campo habituadas à dureza da vida rural, pegaram nas ferramentas do seu dia a dia – foices, gadanhas e enxadas – e marcharam em protesto. Este movimento, que começou como uma defesa das tradições locais, rapidamente se transformou num grito contra as injustiças do regime.
O descontentamento com Costa Cabral e a escalada da revolta
Desde 1842, Costa Cabral, líder do governo, consolidava o poder com medidas centralizadoras que não agradavam ao povo. Sob o pretexto de modernizar e estabilizar o país, instituiu reformas económicas e sociais que geraram enorme descontentamento, especialmente nas zonas rurais. A “Lei da Saúde” foi apenas o estopim.
A revolta da Maria da Fonte – assim chamada devido à participação ativa das mulheres – tornou-se um movimento de contestação generalizada contra os abusos do cabralismo.
Camponeses indignados começaram a queimar cartórios para destruir os registos dos impostos, apelidados de “papeletas da ladroeira”. Em abril de 1846, a revolta atingiu tal proporção que até as tropas lideradas por José da Silva Cabral, irmão do ministro, recusaram-se a combater o povo.
Um regime de privilégios e monopólios
O ódio ao regime cabralista não era infundado. O Estado vivia essencialmente dos impostos cobrados às classes mais desfavorecidas, enquanto os grandes capitalistas beneficiavam de privilégios e contratos lucrativos. Monopólios como os das Companhias dos Tabacos e do Sabão prosperavam, muitas vezes mascarando negócios especulativos.
Para agravar a situação, em abril de 1845, o governo implementou o “imposto de repartições”, que aumentou a carga tributária sobre os trabalhadores rurais e urbanos. Num país onde a maioria da população vivia da agricultura de subsistência, estas medidas só serviram para alimentar a insatisfação e a revolta.
A queda de Costa Cabral e a guerra civil da Patuleia
A revolta Maria da Fonte, explica a RTP, rapidamente se transformou num movimento nacional. Confrontada com a pressão popular, a rainha D. Maria II demitiu Costa Cabral. No entanto, o descontentamento já estava demasiado enraizado, e o país mergulhou numa guerra civil conhecida como a Patuleia, que opôs os “setembristas” e outros grupos populares aos apoiantes do cabralismo.
Esta guerra, que durou até 1847, terminou com a intervenção das tropas britânicas e francesas, chamadas para restaurar a ordem. Apesar de ter sido reconduzido ao poder mais tarde, o reinado de Costa Cabral jamais recuperou a estabilidade.
A força das mulheres na história de Portugal
A revolta da Maria da Fonte não foi apenas um episódio de resistência; foi um marco na história da participação popular em Portugal, liderado por mulheres que ousaram desafiar as normas sociais e políticas da época. Armadas com ferramentas de trabalho, estas mulheres provaram que o seu espírito combativo podia mudar o rumo da história.
Este episódio permanece como um símbolo de como as vozes marginalizadas – neste caso, as mulheres do Norte – podem transformar o seu descontentamento em catalisador de mudança. Um lembrete de que, mesmo nas épocas mais sombrias, a coragem e a resistência encontram formas de se manifestar.
Se visitar o Minho hoje, procure as memórias desta revolta que começou num pequeno povoado, mas que ecoou por todo o país. Afinal, a história da Maria da Fonte é a história de um povo que se levantou em nome da justiça e da dignidade.