Pode parecer algo estranho, mas a nossa história poderia ter sido completamente diferente caso D. Ramiro II tivesse concretizado os seus planos de fazer de Viseu a capital do território português e declarar a independência face aos restantes reinos cristãos da Península Ibérica. Este monarca, muito antes de D. Afonso Henriques, chegou a intitular-se “Rex Portucalensis”, em 925, lançando as bases para uma identidade territorial portucalense que viria a consolidar-se séculos depois.
Quem foi D. Ramiro II?
D. Ramiro II, rei do reino de Leão, foi uma figura central na história peninsular do século X. Este monarca destacou-se pela sua capacidade militar e estratégica, sendo o responsável por unir as forças de Navarra, Leão e Aragão numa coligação que derrotou os exércitos muçulmanos na batalha de Simancas, em 939.
Essa vitória foi crucial para consolidar a fronteira sul do reino de Leão ao longo do vale do Douro. Apesar desses feitos, os últimos anos do seu reinado foram marcados pela ascensão de Castela, que se tornou um condado independente sob a liderança do conde Fernão Gonçalves.
Ainda em tenra idade, D. Ramiro foi educado por Diogo Fernandes e sua esposa, senhores de vastos territórios no vale do Douro e Mondego, explica a VortexMag. Essa educação nobre moldou o seu caráter e influenciou as suas ambições territoriais.
Ao assumir a coroa, D. Ramiro demonstrou ser um visionário ao reconhecer a importância da região portucalense. Durante um curto período, reivindicou o título de rei desta terra, consolidando a ideia de uma entidade política e cultural distinta, já em gestação desde a conquista de Vímara Peres em 868.
A Cava de Viriato: um enigma histórico
Um dos elementos que mais intriga os historiadores e arqueólogos é a possível ligação de D. Ramiro II à construção da Cava de Viriato, em Viseu. Este monumento, que se destaca como o maior do género na Península Ibérica, é um octógono com 32 hectares e impressionantes taludes de quatro metros de altura e 250 metros de comprimento cada. Apesar da sua magnitude, a função original da estrutura permanece um mistério.
A sua construção tem gerado diversas teorias. Uma delas sugere que a cava foi erigida como campo militar, podendo ter sido usada por romanos, muçulmanos ou mesmo pelas tropas de Almansor, que partiram de Viseu para conquistar Santiago de Compostela.
Curiosamente, há uma estrutura semelhante no Iraque, o que fortalece esta hipótese. No entanto, a ausência de vestígios materiais concretos dificulta a confirmação de qualquer tese.
Outra possibilidade é a ligação direta com D. Ramiro II. Em 925, o monarca terá transferido temporariamente a sua corte para Viseu, onde se dedicou à organização da cidade.
Alguns documentos mencionam a existência de uma “Vila Velha” e de uma “Vila Nova”, sugerindo uma tentativa de trasladar a população para uma área mais segura, protegida por uma nova fortificação. A Cava de Viriato poderia, assim, ser o perímetro inicial desta nova cidade. Contudo, com a morte de Afonso IV em 931, D. Ramiro regressou a Leão para assumir a coroa, deixando o projeto inacabado.
A evolução e o simbolismo da Cava
Ao longo dos séculos, a Cava de Viriato transformou-se num espaço urbanizado, integrado no tecido da cidade de Viseu. Hoje, no interior e ao redor do monumento, encontramos estradas, vivendas, quintas, jardins e uma icónica estátua de Viriato.
Este último elemento, instalado no contexto da propaganda do Estado Novo, reforça uma ligação lendária entre o local e o herói lusitano. Com a inscrição “Aqui mergulham as raízes desta raça viva e forte, imortal na sua essência”, a narrativa encaixava perfeitamente na valorização da identidade nacional promovida pelo regime.
Apesar da falta de evidências que confirmem a presença de Viriato ou dos lusitanos na cava, o seu nome foi associado ao monumento no século XVII. Antes disso, pensava-se tratar de um castro lusitano ou de uma fortificação anti-romana. Essas interpretações, ainda que românticas, contribuíram para perpetuar o misticismo em torno do local.
Um legado por desvendar
A Cava de Viriato e a história de D. Ramiro II são exemplos de como o passado guarda mistérios e possibilidades não concretizadas. Se Viseu tivesse sido a capital de um reino independente, como teria sido o desenvolvimento da nossa identidade nacional? E se a cava fosse, de facto, o coração de uma cidade fortificada idealizada por Ramiro II, que histórias ainda estão por revelar?
Embora as respostas possam nunca ser encontradas, uma coisa é certa: os vestígios e narrativas que chegaram até nós são preciosos para compreender a complexidade e a riqueza da história portuguesa.