Em mais uma História Portuense, Germano Silva recorda um episódio pitoresco protagonizado pelo imperador do Brasil, D. Pedro II, numa das suas visitas à cidade do Porto. Segundo a Rádio Portuense, esta história envolta em polémica e que se tornou conhecida pelo “calote” imperial, teve como cenário o Grande Hotel do Louvre, um dos estabelecimentos mais luxuosos da época.
Uma aristocrata e empresária de sucesso
Nos meados do século XIX, D. Maria Henriqueta de Mello Lemos e Alvelos destacava-se na sociedade portuense não só pelo seu título aristocrático, mas também pelo talento empresarial.
Dirigia o Grande Hotel do Louvre, situado num edifício imponente que fazia esquina entre a rua de D. Manuel II e a rua do Rosário. Naquela época, o hotel era conhecido pelo luxo e sofisticação que oferecia aos seus hóspedes, atraindo a elite que visitava a cidade. Infelizmente, o edifício encontra-se atualmente em ruínas, testemunha silenciosa de tempos áureos.
A visita do imperador incógnito
No final de fevereiro de 1872, D. Maria Henriqueta acolheu um hóspede especial: o imperador do Brasil, D. Pedro II, que viajava em segredo sob o título de duque de Alcântara, acompanhado pela esposa, D. Teresa Cristina Maria, e uma comitiva de dezassete pessoas.
A visita a Portugal tinha um objetivo específico: ver o Palácio de Cristal do Porto, um marco arquitetónico e cultural da cidade, inaugurado sete anos antes e conhecido pelo seu charme singular.
A conta exorbitante e o litígio judicial
Após três dias de estadia, chegou o momento de liquidar a conta, que somava 4.500 réis. D. Pedro II, achando o valor elevado, ordenou ao seu mordomo, Nicolau António do Vale da Gama, que se recusasse a pagar e instruísse o cônsul do Brasil no Porto, Manuel José Rebelo, a apresentar uma queixa em tribunal, acusando D. Maria Henriqueta de especulação.
Seguiu-se uma batalha judicial que durou cinco anos, até que, a 6 de outubro de 1877, o tribunal da segunda vara civil do Porto deu razão à hoteleira, considerando a quantia justa e não especulativa.
A ousada jornada ao Brasil para cobrar a dívida
Com a sentença favorável, D. Maria Henriqueta dirigiu-se ao consulado do Brasil para exigir o pagamento. Frente à recusa do cônsul, tomou uma decisão ousada: viajar para o Brasil e cobrar diretamente do imperador. Esta atitude, sem precedentes para a época, demonstrou a determinação da empresária portuense, que partiu numa longa viagem ao Rio de Janeiro.
Ao chegar ao Brasil, D. Maria Henriqueta deparou-se com novos desafios, incluindo a dificuldade de obter uma audiência com o imperador. Não desistindo, decidiu recorrer aos jornais para expor a situação, transformando a disputa numa questão de interesse público. A imprensa brasileira rapidamente deu destaque ao caso, que começou a resvalar para o escândalo.
O desfecho inesperado: Portugueses pagam a dívida
A situação tornou-se de tal forma embaraçosa que dois portugueses ricos residentes no Rio de Janeiro decidiram intervir. Pagaram a dívida ao hotel e financiaram a viagem de regresso de D. Maria Henriqueta a Portugal, pondo fim a um episódio que ameaçava manchar a reputação de D. Pedro II.
A última visita e o desfecho trágico
Dezassete anos após o incidente, D. Pedro II voltaria ao Porto, agora como exilado, após a proclamação da República no Brasil, a 15 de novembro de 1889. Desta vez, hospedou-se no Grande Hotel do Porto, na rua de Santa Catarina, onde, a 28 de dezembro de 1889, a imperatriz D. Teresa Cristina Maria faleceu num dos quartos. Esta última visita marcaria o fim de um capítulo dramático e romântico na história do monarca brasileiro em terras portuguesas.
Uma história de confronto, resiliência e prestígio
A passagem de D. Pedro II pelo Porto revela muito sobre a mentalidade da época e o contraste entre a honra aristocrática e a tenacidade de uma empresária que não hesitou em desafiar um imperador.
D. Maria Henriqueta demonstrou resiliência e uma coragem pouco comum ao defender os seus direitos, mesmo perante o poder e influência de uma figura imperial. Esta história é mais do que uma anedota histórica; é um reflexo de tempos em que a honra e a reputação pesavam tanto quanto a riqueza ou o poder.
Embora a dívida tenha sido paga por terceiros, o episódio tornou-se célebre e adicionou mais uma página de episódios curiosos à história do Porto. Esta cidade, que já viu imperadores, reis e outros ilustres hóspedes passarem pelos seus salões, ficou também marcada pela perseverança de uma mulher que, de forma ousada, não se curvou perante o título, mas lutou pelo que acreditava ser justo.