Na madrugada de 26 de novembro de 1967, a região de Lisboa foi palco de uma das maiores tragédias naturais da sua história recente. A chuva começou como um chuvisco aparentemente inofensivo, mas rapidamente se transformou num dilúvio devastador que, em apenas três dias, deixou um rasto de destruição.
Calcula-se que mais de 700 pessoas tenham perdido a vida, milhares ficaram desalojadas, e cerca de 20 mil habitações foram destruídas. Contudo, o número oficial de mortos nunca foi confirmado, devido à censura imposta pelo regime do Estado Novo, que ordenou a interrupção da contagem quando o balanço oficial se fixava em 462 vítimas.

O que provocou as cheias?
A catástrofe foi desencadeada por uma depressão meteorológica que percorreu o Vale do Tejo, trazendo chuvas torrenciais e ininterruptas. O impacto foi agravado pelo facto de o ano de 1967 ter sido particularmente seco, o que fez com que os solos, incapazes de absorver tamanha quantidade de água, ampliassem os efeitos devastadores da precipitação.
Em várias localidades do distrito de Lisboa, os registos meteorológicos mostram acumulados históricos: em Loures e Vila Franca de Xira, os volumes chegaram a 170 litros por metro quadrado.
Na estação meteorológica de Gago Coutinho, em Lisboa, registaram-se impressionantes 115,6 milímetros de precipitação em apenas 24 horas.
As zonas mais afetadas
A destruição fez-se sentir com maior intensidade nos concelhos de Loures, Vila Franca de Xira, Odivelas, Oeiras, Cascais e Alenquer, onde as águas galgaram ruas e submergiram bairros inteiros.
Lisboa também não foi poupada: a Avenida de Ceuta transformou-se num rio, a Avenida da Índia ficou soterrada em lama e a Praça de Espanha foi completamente inundada. Os transportes públicos colapsaram, com linhas de comboio interrompidas e estradas cortadas devido a inundações e deslizamentos de terras.
Impactos culturais e patrimoniais
O impacto das cheias não se limitou à destruição material e à perda de vidas. O património cultural também sofreu: na Fundação Calouste Gulbenkian, centenas de livros destinados a bibliotecas itinerantes ficaram inutilizados devido às águas que invadiram os pisos subterrâneos da sede. Em Oeiras, a chuva penetrou no interior do Palácio Pombal, embora as obras de arte tenham sido milagrosamente poupadas.

O sofrimento humano
As maiores vítimas, no entanto, foram os cidadãos comuns. Nos bairros mais pobres, as habitações frágeis e improvisadas cederam à força das águas, apanhando muitas famílias desprevenidas. Centenas de pessoas perderam a vida ao tentarem abandonar as suas casas ou foram arrastadas pelas correntes. Arsénio Nunes, então diretor do Instituto de Medicina Legal, declarou ao jornal O Século que nunca antes, em 110 anos de história da instituição, tinha sido recebido um número tão elevado de cadáveres num único dia.
Passadas semanas, ainda eram encontrados corpos escondidos entre a lama e os escombros. Fotografias da época mostram uma realidade desoladora: cadáveres de pessoas e animais alinhados ao longo das estradas, enquanto os sobreviventes lutavam para reconstruir o que restava das suas vidas.
O silêncio imposto
Segundo o Observador, num regime autoritário como o Estado Novo, tragédias como esta eram tratadas com um manto de silêncio. A censura controlou a divulgação de informação nos meios de comunicação, minimizando o impacto real das cheias na opinião pública.
Este apagamento deliberado da história oficial torna ainda mais importante recordar este episódio trágico, não só para honrar as vítimas, mas também para compreender as fragilidades estruturais que perpetuaram a escala da destruição.
Uma memória que não se apaga
As cheias de 1967 continuam a ser um marco trágico na história de Portugal, uma lembrança de como as forças da natureza podem devastar uma região inteira em poucas horas.
Ao mesmo tempo, este evento é um testemunho da resiliência do povo português, que enfrentou a destruição com coragem e solidariedade. A memória desta tragédia é um apelo contínuo para a importância de reforçar infraestruturas e investir em prevenção, para que catástrofes desta magnitude nunca mais se repitam.