O planeta enfrenta uma ameaça silenciosa, mas devastadora — um “tsunami lento” que avança sem aviso e sem travões. A subida do nível do mar, impulsionada pelo aquecimento global, está a redesenhar o futuro das zonas costeiras, ameaçando milhões de edifícios e forçando comunidades inteiras a repensar a sua sobrevivência. É um processo quase invisível no dia a dia, mas que, segundo os cientistas, poderá transformar profundamente o mapa do mundo nas próximas décadas.
Um novo estudo da Universidade McGill, no Canadá, publicado na revista científica Nature Urban Sustainability, lança um alerta contundente: mais de 100 milhões de edifícios poderão desaparecer sob as águas se não houver uma redução imediata e global das emissões de gases com efeito de estufa.
Este não é apenas mais um relatório sobre alterações climáticas — é a primeira avaliação global feita edifício a edifício, com base em imagens de satélite e dados topográficos de altíssima resolução.
A análise detalhada revela o alcance real de um fenómeno que já está em curso: cidades, portos e infraestruturas vitais estão em risco iminente. O mundo assiste ao nascimento de um novo tipo de catástrofe — um desastre lento, mas inevitável, alimentado pelo calor acumulado nos oceanos e pelo degelo das calotes polares.
Um “tsunami” que avança centímetro a centímetro
A geofísica Natalya Gómez, coautora do estudo, descreve o fenómeno como “lento, mas implacável”. Segundo a investigadora, embora se fale frequentemente de uma subida aparentemente modesta — de alguns centímetros —, o verdadeiro perigo reside na sua persistência.
“Estamos a falar de um processo que poderá prolongar-se por séculos, atingindo vários metros de altura se as emissões não forem controladas”, alerta.
Os investigadores estudaram diferentes cenários, com subidas entre meio metro e 20 metros. Mesmo no cenário mais otimista, considerado já inevitável, três milhões de edifícios poderão desaparecer.
No pior dos cenários, com uma elevação superior a cinco metros, mais de 100 milhões de construções seriam engolidas pelo mar — entre elas, zonas residenciais, portos, centros económicos e locais de valor histórico incalculável.
As regiões mais ameaçadas concentram-se no Sudeste Asiático, onde metrópoles como Jacarta e Banguecoque enfrentam já inundações recorrentes. Em África, cidades como Lagos e Mombaça estão sob risco elevado, e na América do Sul, o Brasil e o Peru enfrentam desafios crescentes nas suas zonas costeiras.
O impacto desigual do aquecimento global
O investigador Jeff Cardille, também da Universidade McGill, sublinha que pequenas variações no nível do mar podem ter consequências desproporcionadas. “Um aumento de apenas um metro pode inundar milhares de quilómetros quadrados em deltas fluviais, enquanto zonas com falésias altas resistirão melhor”, explicou.
A vulnerabilidade das regiões costeiras depende fortemente da sua topografia e capacidade de adaptação. Países com menos recursos, com populações densas e territórios planos, como Bangladesh, Vietname ou Moçambique, encontram-se entre os mais expostos. E aqui emerge uma dura realidade: os países menos responsáveis pelas emissões são os que mais sofrem as suas consequências.
Os investigadores chamam a isto uma “dívida ambiental” histórica — uma injustiça global em que o Sul paga a fatura do consumo do Norte. A desigualdade climática, há muito denunciada por organismos internacionais, torna-se agora visível nas margens dos continentes, onde o oceano avança todos os anos um pouco mais.
Um efeito dominó com consequências globais
Mas o impacto da subida do nível do mar não se limita às zonas costeiras. Como explica Eric Galbraith, coautor do estudo, a dependência global das infraestruturas marítimas significa que “uma inundação num porto pode ter efeitos que se propagam muito para além das fronteiras nacionais”.
Portos como El Callao, no Peru, ou refinarias costeiras como as de Durban, na África do Sul, representam nós críticos das cadeias logísticas globais. Uma paralisação prolongada nestes pontos poderia gerar ruturas de abastecimento, aumentos abruptos nos preços de combustíveis e alimentos, e até instabilidade económica em países distantes. O relatório descreve este risco como um “efeito dominó climático” — um colapso silencioso, em cadeia, que ameaça o equilíbrio económico mundial.
O Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC) já tinha alertado que, mesmo com o cumprimento rigoroso do Acordo de Paris, o aumento do nível do mar continuará por séculos, devido à inércia térmica dos oceanos e ao derretimento contínuo das camadas de gelo.
Portugal: entre a erosão e o avanço do mar
Portugal não está entre os países mais vulneráveis, mas também não está imune. O avanço do mar é um fenómeno global, e as costas portuguesas estão a recuar lentamente, ano após ano. A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) já identificou dezenas de pontos críticos, especialmente no Algarve, na Ria de Aveiro e na Figueira da Foz, onde o mar tem invadido terrenos, destruído dunas e ameaçado habitações e estradas costeiras.
A erosão e as inundações sazonais são hoje uma realidade palpável, agravada por tempestades cada vez mais intensas e pela ocupação urbana desordenada. Perante este cenário, os especialistas defendem estratégias de adaptação urgentes — desde a redefinição do uso do solo até à relocalização planeada de comunidades inteiras em áreas de maior risco.
Ferramentas como o mapeamento interativo desenvolvido pela Universidade McGill, disponível através do Google Earth Engine, podem ajudar autoridades e cidadãos a compreender a extensão real da ameaça e a preparar respostas mais eficazes.
A urgência de agir antes que o mar decida por nós
Segundo a Executive Digest, a verdade é dura, mas inevitável: não há escapatória para um aumento moderado do nível do mar. O que ainda pode ser decidido é a velocidade e a magnitude desse aumento. Quanto mais tempo se adiar a transição energética e a redução das emissões, mais o oceano avançará — centímetro a centímetro, década após década.
O “tsunami lento” de que falam os cientistas já começou. E embora o seu movimento seja quase impercetível, o desfecho poderá ser monumental. O que está em causa não é apenas território — é a forma como a humanidade decide viver num planeta em transformação.