O azul do Atlântico entre Troia e Melides parece, à primeira vista, um convite irrecusável. Uma frente marítima de cortar a respiração, com 45 quilómetros de praias douradas a perder de vista. Mas essa promessa de liberdade esbarra, na prática, em barreiras bem concretas. A paisagem é pública, mas o acesso é cada vez mais um privilégio reservado a quem pode pagar. Um luxo com portagem emocional para quem sempre viu o mar como seu.
Entre o mar e o muro invisível
O que era, em tempos, um refúgio popular, tornou-se num labirinto de entraves. Um levantamento recente do Expresso revela que 80% da costa entre Troia e Melides tem acesso condicionado: há falta de caminhos públicos, ausência de sinalização e estacionamento quase inexistente. Por muito que a areia esteja ao alcance da vista, a sensação é de exclusão. O mar está ali, mas o povo não o pode tocar.
O ferry de Setúbal para Troia, outrora passagem simples, tornou-se um filtro económico. Hoje, uma viatura com condutor paga €21, mais €5,50 por cada passageiro. Em duas décadas, os preços quadruplicaram e o número de passageiros caiu para menos de metade. Para uma família, uma ida à praia pode significar €50 só em transporte. Para muitos, como Ana Rodrigues, residente em Setúbal, isso significa desistir:
“Quando era adolescente, íamos a Troia com os amigos, de mochila às costas e toalha no ombro. Agora, é quase impossível.”

Uma canção de denúncia e uma costa em silêncio
A voz de revolta ecoa também na arte. A cantora A Garota Não, setubalense de raiz, denuncia esta realidade na canção Ferry Gold, onde critica a “privatização ordinária da península de Troia” e o desrespeito pelas dunas que antes protegiam os pés dos veraneantes e agora são muralhas para impedir a passagem. Em entrevista, não hesita em acusar o turismo de luxo de impor uma nova forma de segregação social.
A teoria é clara: as praias são públicas por lei. Mas na prática, resorts, empreendimentos e vedações ergueram-se como trincheiras. A natureza foi fatiada, e o direito ao mar tornou-se uma miragem burocrática e económica.
Políticos entre o silêncio e a promessa
A indignação já chegou ao poder local. Em 2023, os presidentes das câmaras de Setúbal, Grândola e Alcácer do Sal apelaram ao Governo para que o acesso fosse democratizado. Uma das propostas era a inclusão das travessias do Sado no passe Navegante, uma medida simbólica de justiça social. A Autoridade da Mobilidade concordou e recomendou renegociação da concessão. Mas até hoje, nada mudou. O passe mensal da Atlantic Ferries custa €99,30 — um valor impensável para muitos trabalhadores e estudantes da região.
O presidente da Câmara de Grândola, António Figueira Mendes (PCP), recusou dar entrevista, alegando que não aceita ser alvo de “instrumentalização jornalística”. O silêncio tornou-se mais ensurdecedor do que qualquer resposta. Já o candidato do PS, Luís Vital Alexandre, não hesita em apontar o dedo à inação da autarquia, defendendo um plano sério de mobilidade com parques de estacionamento e discriminação positiva para os residentes do concelho.
As praias que existem, mas não se tocam
Mais a sul, entre o resort Pestana e o projeto “Na Praia” (propriedade da herdeira da Zara), o cenário repete-se. O acesso ao areal é apenas possível através dos próprios empreendimentos. A APA reconhece que haverá, eventualmente, um acesso pedonal público junto ao Pestana — mas, por enquanto, só veículos de emergência podem usá-lo. A cerca de madeira do “Na Praia” estende-se por três quilómetros. Ninguém passa. Ninguém estaciona. Ninguém entra.
Desde 2002, a proliferação de projetos PIN (Potencial Interesse Nacional) eliminou 76% da Reserva Ecológica Nacional em Grândola. A associação ZERO denunciou o processo como um claro favorecimento de interesses privados. O geógrafo Sérgio Barroso vai mais longe: “Estes empreendimentos nunca deveriam ter sido licenciados sem garantir acessos públicos. É a apropriação de um bem coletivo.”
Caminhos de areia, pegadas de exclusão
Mesmo onde não há resorts, o acesso é precário. Até à Comporta, estaciona-se na berma, caminha-se entre pinhais, atravessam-se dunas fragilizadas. A bióloga Maria Santos, da associação Dunas Livres, alerta para o risco ecológico:
“Perdemos uma luta inglória contra resorts de luxo. Os milhões dos PIN valeram mais do que os ecossistemas. Precisamos de passadiços, transportes sustentáveis e respeito por este património natural.”
Nas praias mais famosas — Comporta, Carvalhal, Pego —, o drama muda de tom, mas mantém a exclusão. Uma sombra pode custar entre €70 e €200 por dia. Um hambúrguer ultrapassa os €20. Estar ali é um sinal de estatuto, não um direito universal.
O Programa da Orla Costeira Espichel-Odeceixe é claro: apenas 20% da costa tem acesso livre. O resto? Vedações, cancelas, seguranças, tarifas. É o mar que vê, mas que já não se sente.
Conclusão: Um país à beira-mar (mas não à beira do povo)
Portugal é um país moldado pelo mar. Os nossos antepassados partiram das nossas praias para descobrir o mundo. Hoje, o mundo compra essas praias, e os portugueses são empurrados para trás, como se o sal da terra já não lhes pertencesse.
O que se passa entre Troia e Melides é mais do que um caso local. É um espelho da desigualdade crescente, da forma como o espaço público é silenciosamente privatizado, e de como a natureza é sacrificada em nome do luxo.
O mar é de todos. O direito a um dia de praia não devia ser um luxo, mas um direito. Que futuro queremos? Um litoral murado a betão e silêncio, ou um país onde todos possam molhar os pés e a alma?
É tempo de voltarmos a conquistar o que já era nosso: a areia, o mar e a dignidade de sermos livres à beira deles.
Os nossos políticos estão a vender o nosso País em proveito próprio,agora a costa alentejana, antes a proibição dos portugueses a pesca do atum na costa Algarvia, o que vira a seguir
Os políticos estão acima da lei, são eles que as fazem, os casos prescrevem, não é ninguém condenado.