Em Portugal, apoiar os pais não é apenas uma questão de consciência ou de afeto: é um dever legal profundamente enraizado no ordenamento jurídico português. O Código Civil, no artigo 1874.º, determina que “pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência”, enquanto a Constituição da República, no artigo 67.º, reforça o princípio da solidariedade familiar como pilar estruturante da sociedade.
Nos últimos anos, esta base legal deixou de ser apenas uma referência moral e passou a ser cada vez mais aplicada nos tribunais. Segundo a CNN Portugal, cresce o número de idosos que recorrem à justiça para exigir apoio financeiro aos filhos, sobretudo quando vivem em situações de abandono, carência económica ou incapacidade.
Quando são os filhos a pagar pensão aos pais
Embora a maioria dos portugueses esteja habituada ao conceito de pensão de alimentos atribuída aos filhos, a realidade inversa é igualmente prevista na lei. E está a tornar-se mais frequente.
Advogados especializados confirmam o aumento de processos judiciais em que pais idosos, incapazes de suportar despesas básicas — alimentação, medicamentos, lares ou cuidados continuados — recorrem aos tribunais para exigir que os filhos contribuam financeiramente.
Em muitos destes casos, o incumprimento pode resultar em penhoras sobre salários ou contas bancárias.
O caso de Guimarães: quando o salário mínimo não impede a obrigação
Um dos episódios mais emblemáticos ocorreu em Guimarães, em 2019. Uma idosa de 81 anos, com incapacidade profunda e residente num lar, enfrentava despesas mensais na ordem dos 550 euros, muito acima da pensão que recebia: apenas 372,59 euros, mais 25,50 euros em medicamentos.
O tribunal determinou que os cinco filhos deveriam contribuir para uma pensão de alimentos no valor total de 202 euros mensais. Cada um pagaria 50,50 euros.
Apenas uma filha recorreu, justificando que recebia apenas o salário mínimo — 580 euros brutos, cerca de 516,20 líquidos — e que, após pagar despesas essenciais, lhe restavam pouco mais de 186 euros por mês. Ainda assim, a decisão foi mantida.
Os juízes consideraram que a mulher dividia despesas com o filho e a nora e que o subsídio de refeição não tinha sido incluído nos cálculos. A decisão sublinhou o princípio fundamental: é preciso equilibrar “o binómio necessidade da autora / possibilidade do réu”.
Mais idosos a avançar para tribunal: vergonha a diminuir, sofrimento a aumentar
Portugal continua a ser um dos países europeus com pensões mais baixas. Em 2014, mais de dois milhões de pensionistas recebiam menos de 600 euros por mês — um número que continua profundamente expressivo. Neste contexto, o recurso aos tribunais tornou-se, para muitos idosos, a única forma de garantir a sobrevivência. Ainda assim, a vergonha e o estigma continuam presentes.
Segundo a advogada Susana Canêdo, muitos idosos só avançam quando a mágoa e o sofrimento emocional se sobrepõem ao receio de romper relações familiares:
“O idoso está tão magoado com os filhos que deixa de ter vergonha de colocar uma ação contra eles.”
Os idosos que recorrem à justiça tendem a ter um perfil comum:
– vivem sobretudo em meios urbanos;
– possuem algum grau de escolaridade;
– viram os rendimentos diminuir drasticamente após a reforma ou a morte do cônjuge;
– enfrentam solidão, abandono ou negligência familiar.
Não é retribuição: é um dever jurídico
Ao contrário do que muitos imaginam, estes processos não são movidos com base numa lógica de “retribuição” — como se os pais exigissem algo em troca dos sacrifícios feitos ao longo da vida.
Pelo contrário: trata-se de um dever de assistência consagrado na lei.
Apenas duas condições são necessárias para que os tribunais decidam a favor do idoso:
- Deve ser provado que a pensão do idoso é insuficiente para cobrir despesas básicas.
- O filho deve ter capacidade financeira para ajudar.
Quando o tribunal conclui que o filho não possui meios, este pode ser isentado. Caso contrário, o incumprimento pode resultar em penhora, reforçando a seriedade desta obrigação familiar.
O que este aumento revela sobre Portugal
O crescimento destes processos expõe fragilidades profundas no sistema social português:
– pensões insuficientes;
– dependência crescente de lares e cuidados continuados;
– famílias fragmentadas;
– solidão crescente entre idosos.
Mas revela também um país onde a lei protege quem está mais vulnerável — mesmo quando isso significa confrontar os próprios filhos.
A obrigação legal de apoiar financeiramente os pais não substitui amor, proximidade ou cuidado. Mas garante que ninguém, por mais frágil que esteja, será deixado para trás por falta de meios.
E num país envelhecido como Portugal, esta é uma proteção que se tornará cada vez mais necessária, refer o Executive Digest.




