Já ouviu falar das siglas poveiras? Trata-se de um fascinante sistema de proto-escrita que sobreviveu durante séculos na Póvoa de Varzim, especialmente entre as comunidades piscatórias. Este legado cultural, com raízes profundas e tradições únicas, é muito mais do que um simples método de comunicação: é um testemunho vivo da história, identidade e resiliência das gentes poveiras.
As siglas poveiras eram gravadas, normalmente, em madeira com o uso de uma navalha, mas também podiam ser pintadas em barcos, redes de pesca e barracões de praia.
Apesar de popularmente conhecidas como “escrita poveira”, não constituem um alfabeto no sentido literal, mas antes um sistema de símbolos gráficos que transmitiam informação essencial de forma acessível.
Origem e função das siglas
As siglas tiveram uma função prática e adaptativa na vida quotidiana dos pescadores da Póvoa de Varzim, muitos dos quais não sabiam ler nem escrever o alfabeto latino. Os símbolos simples e eficazes permitiam registar contas, identificar propriedades ou até mesmo marcar o peixe pescado. Por exemplo:
- Nos negócios: As siglas eram usadas em cadernos de conta fiada pelos comerciantes para identificar os clientes. Cada cliente era representado pela sua sigla, enquanto os valores devidos eram indicados com círculos e riscos, correspondendo a vinténs e tostões.
- Na pesca: O peixe capturado em redes era marcado com as siglas do proprietário e entregue às mulheres responsáveis pela sua comercialização. Cada barco tinha a sua própria sigla, comum a todos os tripulantes, que mudavam de sigla caso passassem a integrar uma nova embarcação.
- Como brasões familiares: Muitas vezes, as siglas funcionavam como assinaturas ou brasões de família, sendo transmitidas hereditariamente de geração em geração.
Raízes viking e herança cultural
A origem das siglas poveiras remonta, ao que tudo indica, à colonização viking das costas portuguesas entre os séculos IX e X. Este sistema de marcas apresenta semelhanças com os bomärken escandinavos, símbolos usados na Escandinávia medieval para funções similares.
A permanência das siglas na cultura poveira pode ser atribuída à forte endogamia da comunidade e à sua capacidade de preservar tradições.
Curiosamente, na Póvoa de Varzim, o filho mais novo era o herdeiro principal das siglas da família, em contraste com a prática comum em outras regiões. O pai transmitia a sua sigla ao filho mais novo sem alterações, enquanto os irmãos mais velhos recebiam versões modificadas da sigla original, chamadas de “piques”.
A presença das siglas em monumentos e locais de culto
As siglas poveiras podem ser encontradas em templos religiosos da região e até no noroeste peninsular, como no Minho e na Galiza. Os pescadores costumavam gravar as suas marcas nas portas de capelas e igrejas, registrando a sua passagem e deixando um testemunho da sua fé e identidade.
Entre os locais onde as siglas ainda são visíveis estão:
- Igreja Matriz da Póvoa de Varzim
- Igreja da Lapa
- Capela de Santa Cruz, em Balasar
- Capela de Nossa Senhora da Bonança, em Esposende
- Monte de Santa Trega, na Galiza
Infelizmente, muitos vestígios foram perdidos ao longo do tempo. Um exemplo notável é a mesa da sacristia da antiga Igreja da Misericórdia, que continha milhares de siglas gravadas pelos poveiros para assinalar casamentos e outros eventos importantes. Com a demolição da igreja, perdeu-se uma peça histórica de inestimável valor.
O legado contemporâneo das siglas poveiras
Apesar de já não desempenharem o papel crucial de outros tempos, as siglas poveiras ainda encontram um lugar em barracões e pertences de famílias tradicionais. A Casa dos Pescadores da Póvoa de Varzim reconhece as siglas como formas legítimas de assinatura, perpetuando esta tradição.
Contudo, o desaparecimento gradual das siglas das praias, devido à modernização e reestruturação dos barracões, representa uma ameaça a esta herança cultural. A ausência de uma política de salvaguarda por parte das autoridades locais coloca em risco a preservação deste legado único.
A história das siglas poveiras é um testemunho da capacidade de adaptação e do engenho de uma comunidade que, ao longo dos séculos, enfrentou as adversidades do mar e da vida. Hoje, mais do que nunca, é essencial celebrar e proteger esta herança, garantindo que as futuras gerações possam conhecer e valorizar este pedaço singular da identidade poveira.