Pouco conhecida entre os episódios históricos de Portugal, a ocupação britânica da Madeira no início do século XIX é uma história de poder, influência e interesses políticos no Atlântico. Entre 1807 e 1814, a ilha tornou-se um ponto estratégico controlado pelos britânicos, como medida para proteger-se das ameaças francesas durante o período das Guerras Napoleónicas. Esta ocupação teve repercussões significativas, moldando as relações entre o arquipélago, a Grã-Bretanha e Portugal, além de ter deixado marcas profundas na sociedade e economia madeirense.
A ocupação inglesa e a importância estratégica da madeira
A Madeira foi ocupada duas vezes por tropas britânicas, refletindo a importância estratégica que a ilha tinha para a Grã-Bretanha e a Espanha no controlo das rotas comerciais do Atlântico. A primeira ocupação decorreu entre julho de 1801 e janeiro de 1802, um período curto mas que deu um vislumbre do interesse de Londres na região. Já a segunda ocupação, de dezembro de 1807 a outubro de 1814, estendeu-se por sete anos e consolidou um controlo britânico que só seria revertido com a assinatura do Tratado de Paz entre a Grã-Bretanha e a França, em 1814.
Em 1799, o brigadeiro-general britânico Frederic Maitland reportou ao ministro Henry Dundas a sua preocupação com a vulnerabilidade da Madeira às ações de corsários e à influência francesa. Essa preocupação tornou-se ainda mais relevante com o crescente poder de Napoleão, cuja expansão agressiva ameaçava os aliados e interesses da Inglaterra. No entanto, Espanha também se mostrava atenta à importância estratégica da Madeira, especialmente enquanto usava as Ilhas Canárias como entreposto de riquezas vindas da América, o que fazia da região atlântica um espaço de disputas e tensões.
O contexto da segunda ocupação britânica (1807-1814)
Em 1807, o general Guilherme Carr Beresford desembarcou na Madeira, acompanhado das suas tropas, e rapidamente assegurou a rendição do governador e capitão-general da ilha. Este ato marcou o início de uma segunda fase de ocupação, na qual os britânicos assumiram o controlo absoluto do arquipélago.
Esta ocupação britânica foi consolidada pela assinatura do Tratado de Restituição da Madeira, em março de 1808, que devolvia a ilha à administração civil portuguesa, embora uma guarnição britânica permanecesse para garantir que não haveria interferência francesa até ao fim da ocupação em 1814.
A decisão de manter uma guarnição na ilha permitiu que os britânicos controlassem a economia da Madeira, garantindo que os interesses comerciais da Grã-Bretanha fossem priorizados, o que manteve a ilha num estado de dependência económica considerável.
A influência económica e social britânica na sociedade madeirense
Durante este período, a Madeira tornou-se quase uma extensão comercial da Grã-Bretanha. O controlo britânico sobre a economia do arquipélago era notório, com comerciantes ingleses a estabelecerem feitorias e casas comerciais em pontos estratégicos. Estes comerciantes beneficiavam de privilégios significativos, incluindo isenções fiscais e vantagens no comércio de vinhos e produtos locais, o que relegava os comerciantes portugueses a uma posição de menor relevância. Para muitos madeirenses, os britânicos não eram apenas “estrangeiros”: eram concorrentes poderosos, com uma capacidade de crédito e influência política inigualáveis.
O negócio do vinho, uma das principais riquezas da ilha, estava sob controlo praticamente absoluto dos comerciantes ingleses, que concediam créditos aos viticultores locais e, em troca, asseguravam que a produção fosse direcionada exclusivamente para o comércio britânico. Embora isso garantisse algum fluxo de receita para os produtores locais, a maior parte dos lucros acabava por ser transferida para a Grã-Bretanha.
A presença económica britânica também refletia-se na sociedade. Os britânicos, com uma comunidade sólida e estruturada, possuíam instituições próprias, viviam em áreas específicas e tinham relações limitadas com os habitantes locais, resultando numa sociedade dividida. Esta separação social e económica, como refere a VortexMag, contribuiu para o surgimento de uma certa britanofobia entre os madeirenses, especialmente nas classes populares e entre os movimentos políticos nacionalistas e republicanos.
Repercussões e consequências da ocupação britânica
A presença britânica na Madeira manteve-se, de certa forma, mesmo após o fim da ocupação oficial, dada a influência económica e os interesses comerciais que se estabeleceram durante aqueles sete anos.
No entanto, com o declínio do Império Britânico e a perda de algumas colónias, como os Estados Unidos da América, o impacto económico dessa hegemonia começou a decrescer, mas foi precisamente na Madeira que se fez sentir uma crise económica resultante deste retrocesso imperial, devido à dependência criada durante anos.
No início do século XX, este sentimento anti-britânico ressurgiu com força no contexto do republicanismo madeirense, e em 1911 os republicanos emitiram um ultimato aos britânicos para que abandonassem a ilha.
Esse pedido, contudo, não teve resultados práticos imediatos, dado o peso das casas comerciais britânicas ainda instaladas e influentes no arquipélago. Contudo, o episódio marcou uma mudança gradual na relação entre os madeirenses e a comunidade britânica, que começou a perder o controlo dominante à medida que o século avançava.
Herança e legado da ocupação britânica na madeira
Hoje, a influência britânica ainda é visível na Madeira, seja nos apelidos de muitas famílias madeirenses, seja na cultura do vinho da Madeira, onde a tradição inglesa ainda encontra raízes e memórias. Estes sete anos de ocupação deixaram uma marca profunda, com reflexos na economia, cultura e identidade social da ilha, sendo uma parte significativa da história que não é amplamente divulgada, mas que ainda influencia a Madeira dos dias de hoje.
A presença britânica na ilha não foi apenas uma ocupação militar; foi uma fase de integração económica e social que moldou a Madeira para as gerações futuras, deixando heranças que, embora subtilmente, ainda fazem parte do dia-a-dia do arquipélago.