Nem toda a gente o sabe, mas, sob os animados pavimentos do Porto, esconde-se um segredo milenar: o rio da Vila. Este curso de água, formado pela união de dois antigos mananciais, foi durante séculos a artéria vital que abasteceu fontes, chafarizes e até mesmo os corações dos portuenses. Hoje, apesar de ter sido relegado ao subsolo, a sua história e importância estão prestes a ser reveladas num ambicioso projeto cultural.

O murmúrio esquecido
Durante muitos séculos, o rio da Vila foi o elo que uniu a cidade, transportando não só água, mas também histórias, lendas e tradições.
Um dos mananciais que lhe deu origem nascia na área que hoje ocupa a Praça do Marquês de Pombal, serpenteando pela atual Avenida dos Aliados e passando pela Praça da Liberdade.
Ao longo deste percurso, a água regava campos e hortas, contribuindo para a fertilidade do solo e o sustento dos que ali viviam. O outro manancial surgia das elevações da Fontinha, descendo em direção ao Mercado do Bolhão, onde um pequeno ribeiro se fundia ao seu curso, antes de seguir pela Rua de Sá da Bandeira.
Estes dois cursos encontravam-se na área que hoje corresponde à Praça Almeida Garrett, em frente à Estação de São Bento, dando origem a um dos mais antigos e significativos cursos de água da cidade.
A nascente de uma identidade
Já em 1120, num documento de doação do burgo portucalense ao Bispo D. Hugo, assinado por D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, o rio da Vila aparece referido como “Canallem maiorum”.
Este nome, em contraposição ao “canal menor” – o rio Frio, situado a poente –, evidencia a importância que o curso de água teve na história e na organização urbana do Porto.
Durante séculos, o rio foi uma fonte indispensável de água potável para abastecer as fontes e chafarizes que embelezavam a cidade, além de ser utilizado como meio de transporte para mercadorias e pessoas entre a zona alta e a área ribeirinha.
Esta ligação intrínseca entre o rio e a vida quotidiana dos portuenses fez dele um símbolo identitário, inspirando lendas, tradições e manifestações artísticas que perduram até aos dias de hoje.

Um legado de abundância e desafios
Apesar de ter sido fonte de vida, o rio da Vila também trouxe consigo grandes desafios. Com o crescimento urbano e o avanço das atividades industriais, o seu leito passou a receber esgotos domésticos e resíduos, transformando-o num foco de poluição e doenças. Além disso, o seu percurso impedia a expansão e a circulação da cidade, exigindo a construção de pontes, viadutos e túneis para contornar o obstáculo. Sem falar no risco constante de inundações, deslizamentos e erosão das margens, problemas que levaram os responsáveis a tomar medidas drásticas para salvaguardar a segurança dos habitantes.
A transformação para o subsolo
Para contornar estes problemas, foram implementadas várias intervenções ao longo dos séculos. Em 1336, durante o reinado de D. Afonso IV, iniciaram-se obras para a construção de novas muralhas que se estendiam pela cidade, culminando, mais tarde, com a encanação dos ribeiros que se juntavam junto ao antigo Convento de São Bento da Avé-Maria, no reinado de D. Fernando.
Em 1736, a parte do rio próxima à Ribeira foi coberta com a construção da Rua de São João, e em 1875, com a abertura da Rua Mouzinho da Silveira, encanou-se o trecho que ainda permanecia a descoberto.
Por fim, na segunda década do século XX, com a construção da Avenida dos Aliados e outras obras urbanísticas, os mananciais do rio da Vila foram definitivamente relegados ao subsolo da cidade, tornando-se um vestígio esquecido do passado.
O renascer de uma memória líquida
Contudo, a história do rio da Vila está prestes a ganhar nova vida. Num projeto inovador, em construção atualmente, pretende-se transformar este curso de água num museu subterrâneo, um espaço onde a sua rica história será revelada e celebrada.
Imagina-se um percurso museológico com 350 metros, onde os visitantes poderão caminhar sobre o leito da água e explorar diversas abóbadas e galerias de pedra, que datam desde a época romana até aos tempos modernos.
Este percurso não só permitirá descobrir a trajetória física do rio, como também a sua importância cultural e histórica para o Porto.
Um encontro com o passado
A nova intervenção prevê, ainda, a instalação de um espaço expositivo na galeria e a criação de uma entrada na Estação de São Bento, que contará com uma receção acolhedora, bilheteira e loja de recordações.
O museu subterrâneo será integrado no eixo líquido e no eixo sonoro do Museu da Cidade do Porto, formando uma rede temática que celebra a água e o som, elementos que são essenciais à identidade e à memória desta cidade.
Este projeto representa uma oportunidade única de reconetar os portuenses com um pedaço de história que, apesar de ter sido encoberto pelo progresso, continua a pulsar sob os alicerces da cidade.
A salvaguarda de um património oculto
Para garantir que este renascimento se efetue em harmonia com o contexto urbano e cultural do Porto, o projeto inclui um rigoroso Plano de Salvaguarda do Património Cultural. Tendo em conta a interferência das obras da futura Linha Rosa do Metro do Porto, foram implementadas medidas de compensação que asseguram a preservação deste património histórico.
A ideia é transformar o rio da Vila num equipamento cultural inovador e atrativo, contribuindo para a dinamização cultural e turística da cidade, e permitindo que o seu legado seja apreciado por futuras gerações.
Um convite à redescoberta
A reabertura do rio da Vila como museu subterrâneo é, acima de tudo, um convite à reflexão e à redescoberta. É uma oportunidade para os visitantes mergulharem na história oculta do Porto, para compreenderem como a água, mesmo escondida sob o solo, foi e continua a ser um elemento vital que moldou a identidade da cidade.
Ao percorrer os 350 metros do percurso museológico, cada pedra, cada abóbada, contará uma parte desta narrativa emocionante, revelando segredos e memórias que há muito estavam adormecidas.
Este projeto inovador promete resgatar um dos patrimónios mais singulares e esquecidos do Porto, transformando o invisível em algo tangível e repleto de significado. Ao valorizar o rio da Vila e a sua trajetória, o museu subterrâneo não só enriquece a oferta cultural da cidade, como também reafirma a importância de preservar a história e a memória dos que vieram antes de nós.
Assim, o rio da Vila, que outrora abasteceu a cidade e inspirou tantas histórias, está prestes a emergir das sombras do subsolo para iluminar novamente o coração do Porto.
Cada gota de água e cada pedra deste percurso serão testemunhas silenciosas de uma história de vida, de desafios e de renovação, convidando-nos a olhar para o passado com olhos de esperança e a valorizar o património que, mesmo oculto, continua a ser a alma da cidade.