O relatório intercalar do Gabinete de Prevenção de Acidentes Ferroviários (GPIAF) sobre o trágico acidente no Elevador da Glória, em Lisboa, é devastador para a Carris e para a empresa responsável pela manutenção, a MAIN. O documento revela um conjunto de falhas técnicas e administrativas que, em conjunto, criaram o cenário perfeito para a tragédia que abalou o país e tirou a vida a 15 pessoas.
Um cabo que nunca devia ter transportado passageiros
De acordo com o GPIAF, o cabo que cedeu e originou o desastre não estava certificado para transporte de pessoas. Pior ainda: não cumpria as especificações da Carris em vigor desde 2011, nem possuía o destorcedor obrigatório nas extremidades — precisamente o ponto onde se deu a rutura fatal.
Esta falha, que deveria ter sido detetada durante as inspeções regulares, expõe um sistema de controlo interno profundamente comprometido, incapaz de garantir o cumprimento das normas de segurança mais básicas.
Manutenção “cumprida” apenas no papel
O relatório é igualmente demolidor quanto às práticas de manutenção. O GPIAF concluiu que muitas das tarefas registadas como realizadas nunca chegaram a ser executadas, corroborando as denúncias já divulgadas pela TVI/CNN.
Ainda assim, a Carris considerou o plano de manutenção conforme e validou-o oficialmente, demonstrando uma preocupante falta de rigor.
A situação agrava-se com a descoberta de que as inspeções previstas para o próprio dia do acidente foram registadas como concluídas, apesar de não terem sido realizadas no horário indicado.
As imagens de videovigilância analisadas pelos peritos confirmam que nenhum técnico entrou no fosso do elevador — o local onde seria possível observar o estado real do cabo.
Travões falharam no momento mais crítico
Outro dado alarmante prende-se com o sistema de travagem. Mesmo após o guarda-freio ter acionado todos os travões disponíveis em menos de um segundo, o mecanismo demorou sete metros a imobilizar a cabine. O relatório sublinha que não há registos de qualquer teste prévio ao travão de emergência em situação de falha total do cabo — uma lacuna que pode ter custado vidas.
Os técnicos apuraram também que o sistema de travagem das cabinas era frequentemente sujeito a ajustes, mas as anomalias raramente eram reportadas de forma formal. A ausência de registos e de um protocolo transparente de controlo de qualidade reforça a ideia de negligência operacional continuada.
Um histórico de acidentes silenciado
O GPIAF confirma que o Elevador da Glória já tinha registado dois acidentes anteriores, em outubro de 2024 e maio de 2025, informação que a Carris tentou ocultar da entidade investigadora. Ambos os episódios revelam um padrão de falhas técnicas recorrentes que nunca foram devidamente corrigidas, expondo passageiros e trabalhadores a um risco crescente.
Importa sublinhar que, apesar da sua importância histórica e turística, os elevadores de Lisboa estão sob gestão exclusiva da Carris, sem qualquer supervisão independente. Esta ausência de fiscalização externa poderá ter contribuído para a perpetuação de práticas inseguras e para a falsa sensação de normalidade operacional.
“Causas técnicas, não políticas”, reage Carlos Moedas
Perante a gravidade das conclusões, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, afirmou que o relatório confirma o que sempre defendeu: “A tragédia do Elevador da Glória teve causas técnicas e não políticas.”
Ainda assim, as revelações do GPIAF levantam questões profundas sobre a cultura de segurança na Carris, a eficácia dos mecanismos de supervisão pública e a responsabilidade das entidades envolvidas.
À espera do relatório final
De acordo com a CNN, o GPIAF sublinha que este é um relatório intercalar, com caráter preliminar, e que as conclusões definitivas apenas serão conhecidas no próximo ano, após a conclusão da investigação. No entanto, as evidências já recolhidas são suficientemente graves para exigir uma revisão imediata das práticas de manutenção e fiscalização em todos os elevadores históricos da cidade.
O Elevador da Glória, símbolo centenário de Lisboa e testemunha viva do seu quotidiano, tornou-se agora um símbolo de falhas humanas e institucionais — um alerta doloroso sobre o preço da negligência e da complacência.
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