Imagine atender o telemóvel e, do outro lado, apenas o mais desconcertante dos silêncios. Nenhuma voz, nenhuma palavra — apenas ruídos vagos, indefinidos, como se alguém estivesse lá, mas não quisesse ser ouvido. O coração acelera, o desconforto instala-se, e a pergunta repete-se: “Quem me ligou? E porquê?”
Este cenário, que parece saído de um thriller psicológico, é real — e acontece todos os dias a milhares de pessoas. As chamadas silenciosas tornaram-se um fenómeno crescente e profundamente perturbador. Em Itália, uma investigação do jornal Corriere della Sera expôs esta prática abusiva, que também já começa a preocupar os consumidores portugueses. E o mais alarmante? Está muitas vezes dentro da legalidade… ou perto disso.
O que são afinal estas chamadas silenciosas?
São contactos telefónicos em que o destinatário atende, mas não ouve ninguém do outro lado. Apenas o silêncio, ou talvez um leve som ambiente. Não se trata de erro. Estas chamadas são, na sua maioria, geradas por sistemas automáticos usados por call centers comerciais.
Estes softwares são programados para fazer mais chamadas do que os operadores conseguem atender, numa tentativa de maximizar a produtividade e evitar tempos de espera. O problema é que, quando ninguém está disponível para falar, o utilizador fica suspenso num limbo de silêncio, sem explicação, sem contexto… e com uma sensação de intrusão difícil de ignorar.
Silêncio que fere: o impacto emocional destas chamadas
Embora a motivação seja meramente comercial, o efeito psicológico pode ser devastador. Há quem relate ansiedade, sensação de estar a ser vigiado, ou até medo de estar a ser perseguido. Para muitos, este silêncio não é inofensivo — é inquietante, invasivo, e chega mesmo a causar insónias ou ataques de pânico.
A Autoridade Italiana para a Proteção de Dados (Garante della Privacy) foi clara: este tipo de chamadas pode configurar uma forma de assédio telefónico, com consequências legais.
E em Portugal? Apesar de não haver legislação tão específica, as regras de proteção de dados e de comunicações eletrónicas também proíbem contactos abusivos, especialmente sem consentimento.
Chamadas de reconhecimento: o lado mais sombrio
Mais grave ainda são as chamadas de “reconhecimento” — aquelas em que ninguém responde porque o objetivo não é falar, mas apenas saber se o número está ativo. Uma vez validado, esse número pode ser vendido a redes de spam, phishing, ou até cibercriminosos. Um risco silencioso, mas real.
A plataforma Red Hot Cyber alerta para este tráfico de contactos que circula na dark web e entre operadores obscuros. Ou seja, pode estar a ser marcado como alvo sem sequer o saber.

A lei começa a apertar o cerco… mas ainda há muito por fazer
Em 2019, o Supremo Tribunal italiano decidiu que chamadas silenciosas repetidas podem constituir crime de assédio, mesmo que tenham sido feitas “por brincadeira” ou com intenções comerciais. Esta decisão abriu caminho para um maior escrutínio legal sobre estas práticas.
Entretanto, o regulador impôs limites claros:
- No máximo 3 chamadas silenciosas por cada 100 com sucesso;
- O silêncio não pode durar mais de 3 segundos;
- Deve existir um intervalo mínimo de 5 dias entre chamadas não atendidas ou mal sucedidas.
Além disso, as empresas devem garantir que exista um operador pronto a falar e utilizar “ruído de conforto” (sons suaves de escritório, por exemplo) para evitar alarmismos desnecessários.
Como se pode proteger já hoje?
Embora o controlo total esteja longe de ser possível, há medidas simples que pode adotar:
- Registe o seu número na lista de oposição a comunicações publicitárias (em Portugal, através da Lista de Oposição à Receção de Comunicações – LOPC);
- Instale aplicações que identificam e bloqueiam chamadas suspeitas (como Truecaller ou Hiya);
- Nunca forneça dados pessoais por telefone, mesmo que pareçam inofensivos;
- Anote a data, hora e número das chamadas e reporte à sua operadora ou à ANACOM;
- Em caso de insistência, apresente queixa junto das autoridades competentes.
Portugal também está na linha de fogo
Embora a investigação do Corriere della Sera tenha sido centrada em Itália, não há fronteiras digitais nestas práticas. Em Portugal, são cada vez mais os relatos de chamadas silenciosas, e as autoridades começam a receber denúncias preocupantes.
Cabe-nos, enquanto consumidores, estar atentos, proteger-nos e exigir que os nossos dados sejam respeitados. O silêncio não pode continuar a ser usado como arma de intrusão.
O futuro: vigilância, responsabilidade e reforma digital
Numa era em que a tecnologia nos liga a todos, também nos torna vulneráveis. Os reguladores enfrentam o desafio de acompanhar a velocidade dos sistemas automatizados e garantir que os direitos dos cidadãos não são atropelados em nome da eficiência comercial.
A luta é pelo direito à tranquilidade, à segurança emocional e à privacidade no espaço mais íntimo de todos: o telefone que trazemos connosco, todos os dias, no bolso.
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