Entre os capítulos mais controversos da história portuguesa, poucos episódios se comparam ao julgamento público da vida íntima do Rei D. Afonso VI. De 9 de janeiro a 23 de fevereiro de 1668, cinquenta e cinco testemunhas foram chamadas a depor sobre a alegada incapacidade sexual do monarca, um processo que revelou detalhes embaraçosos e chocantes para a época, e que culminou na sua deposição e na anulação do casamento com D. Maria Francisca de Saboia.
O início do escândalo
Dois dias após conhecer o rei, D. Maria Francisca de Saboia terá confidenciado ao seu confessor, o padre jesuíta Francisco de Vila:
“Meu padre, parece-me que não terá Portugal sucessores deste Rei.”
Ao longo dos meses seguintes, a Rainha continuou a relatar em confissão a alegada “inabilidade e impotência” do marido. Eventualmente, refugiou-se num convento e formalizou o pedido de anulação do casamento, processo que foi avaliado por três autoridades da Igreja, quatro desembargadores e quatro cónegos.
Testemunhos públicos e pormenores embaraçosos
Entre as cinquenta e cinco testemunhas, destacaram-se várias mulheres que relataram, em detalhes desconcertantes, os encontros íntimos com o Rei. Alguns dos testemunhos mais marcantes incluem:
Jacinta Monteiro afirmou que esteve três dias despida ao lado do Rei, mas que este alternava entre a ejaculação precoce (“extravas”) e a impotência total (“não o podia fazer intravas”). Jacinta chegou a ser “desflorada” mais tarde por outro homem, levando-a a concluir que o Rei “não prestava”.
Joana Tomásia relatou que o monarca justificava a sua falta de desempenho afirmando estar “muito gastado de mulheres”. Segundo ela, o “membro viril” do Rei era anormal, sendo muito mais delgado na raiz do que na extremidade.
Catarina Henriques, que esteve com o soberano doze vezes em três anos, confirmou a incapacidade do monarca e mencionou a desigualdade entre os seus testículos.
Jerónima Pereira referiu-se ao odor da “semente” do Rei, dizendo que era diferente do cheiro do marido.
Joana de Saldanha descreveu episódios em que D. Afonso VI, aos 24 anos, dizia repetidamente: “Já sou velho, já sou velho.”
Joana de Almeida contou que o monarca se desculpava frequentemente, dizendo: “É grande trabalho ser um homem aleijado!”
A condição de saúde do rei
Os médicos reais atribuíram a sua “frouxidão” a um acidente sofrido na infância, que quase paralisou o lado direito do corpo. Estudos modernos sugerem que D. Afonso VI poderá ter sofrido de uma doença neurológica, como meningoencefalite, que explicaria as suas limitações físicas e cognitivas.
As repercussões políticas e a deposição
Num contexto em que a estabilidade da Coroa era fundamental, sobretudo após a recente Restauração da Independência em 1640, a incapacidade do Rei era vista como uma ameaça à continuidade do Reino, explica a VortexMag.
O processo de anulação do casamento foi apenas a primeira etapa de uma conspiração maior, alimentada pela sua mãe, D. Luísa de Gusmão, e pelo seu irmão, o futuro D. Pedro II. Sem ninguém que o defendesse, D. Afonso VI foi deposto e exilado para os Açores, acabando os seus últimos 14 anos de vida aprisionado no Palácio de Sintra.
Um final irónico
Após a anulação do casamento, D. Maria Francisca de Saboia casou-se com o cunhado, D. Pedro II, consolidando o seu poder na corte. Por ironia do destino, os três protagonistas deste escândalo – D. Afonso VI, D. Maria Francisca e D. Pedro II – estão sepultados no mesmo local, no Panteão dos Braganças, em Lisboa.
Reflexões sobre um escândalo histórico
Embora este processo seja hoje visto como uma humilhação pública sem precedentes, na época, a sucessão dinástica era uma questão de sobrevivência do Reino. Ainda assim, D. Afonso VI, apesar das suas limitações pessoais e políticas, deixou um legado notável como “o Vitorioso”, consolidando a independência territorial e diplomática de Portugal.
Este episódio, considerado por muitos historiadores “o maior escândalo de sempre” da história portuguesa, revela muito sobre as intrigas políticas e sociais do século XVII e continua a ser um dos capítulos mais fascinantes – e desconcertantes – da monarquia portuguesa.