Linguistas alertam: o português brasileiro evoluiu tanto que poderá, num futuro inevitável, transformar-se numa nova língua oficial no Brasil. A separação em relação ao português europeu já está em marcha — e pode não haver volta a dar.
O nascimento de uma nova língua?
A polémica está de volta. O idioma português, que une historicamente Portugal e Brasil, poderá estar prestes a dividir-se formalmente em duas línguas distintas. O tema, embora sensível, tem vindo a ganhar força entre linguistas e académicos de renome: o português falado no Brasil poderá, mais cedo ou mais tarde, tornar-se oficialmente uma nova língua — o “brasileiro”.
A afirmação não é apenas uma especulação linguística: é uma constatação com base em séculos de divergência natural. Segundo Fernando Venâncio, linguista português e autor do aclamado livro “Assim Nasceu uma Língua”, este afastamento é, nas suas palavras, “inevitável”.
“Vai dar-se um afastamento do português europeu. Não sabemos quando é que será. Só sabemos dizer que isso é inevitável.” — Fernando Venâncio, citado pela BBC News Brasil
Diferenças para lá das palavras
As variações entre o português europeu e o brasileiro vão muito além de simples vocabulário. São diferenças fonéticas, sintáticas, lexicais e culturais profundas, moldadas por séculos de história, geografias distintas e influências externas.
Em Portugal, diz-se “frigorífico”, “autocarro” e “peúgas”; no Brasil, é “geladeira”, “ônibus” e “meias”. Estes são exemplos básicos, mas ilustram bem o afastamento crescente.
Mais ainda, a musicalidade do português brasileiro, os seus regionalismos e a sua riqueza vocabular revelam uma identidade linguística própria, impossível de ignorar.
O português nasceu na Galiza — e já se dividiu antes
Convém recordar: o português não nasceu em Lisboa, nem no Porto. A sua origem remonta à antiga Galécia medieval, região que hoje faz parte da Galiza, no norte de Espanha. Foi apenas com a independência de Portugal que o idioma seguiu caminho próprio.
Hoje, quase 900 anos depois, estamos a assistir a um novo desdobramento natural da língua: do português europeu para o português brasileiro — e, possivelmente, do português brasileiro para o “brasileiro” enquanto língua independente.
E há precedentes. O francês do Québec e o francês da França têm reconhecimento distinto. O espanhol falado na América Latina já possui variantes tão consolidadas que muitas vezes são tratadas como realidades linguísticas próprias.
Influências que moldaram uma nova identidade
Desde o início da colonização portuguesa no século XVI, o português falado no Brasil começou a sofrer transformações drásticas. E o motivo é claro: o contacto constante com línguas africanas, indígenas e, mais tarde, europeias (como o italiano e o alemão, trazidos por imigrantes) deu origem a uma nova forma de comunicar — mais plástica, mais aberta, mais plural.
Palavras como “cafuné”, “moleque”, “quitanda”, “tietê”, “xaxim”, “banguela” ou “axé” são apenas alguns exemplos de como o português do Brasil foi absorvendo vocábulos de outras culturas, criando um léxico distinto do europeu.
Um país, muitos sotaques
O Brasil é, em si, uma Babel. Do chiado carioca ao “r” puxado do interior paulista, passando pelo canto nordestino ou pelo português mais “cantado” do Sul, o país apresenta uma diversidade linguística interna que não encontra paralelo em Portugal.
Segundo estudos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), esta riqueza de sotaques e regionalismos reforça ainda mais o argumento de que o idioma falado pelos brasileiros já não se comporta como uma simples variante do português europeu — mas como algo novo, com alma própria.
O fracasso do Acordo Ortográfico
O polémico Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, criado para unificar a ortografia dos países lusófonos, continua a ser um tema divisivo. Apesar da sua implementação parcial, as diferenças continuam a ser gritantes, tanto na escrita como na fala.
No Brasil, há resistência. Muitos consideram que o português do país não precisa de validação europeia. E, cada vez mais, a ideia de que o Brasil tem a sua própria língua, moldada pela sua história, sociedade e cultura, começa a ganhar espaço — e voz.
O reconhecimento do “brasileiro”: uma questão de tempo?
Apesar do ceticismo de alguns setores mais conservadores, o movimento para o reconhecimento do “brasileiro” como língua oficial cresce em meios académicos e culturais.
A pergunta já não é se isso vai acontecer. É quando. Porque, na prática, o “brasileiro” já existe: é a língua falada por mais de 200 milhões de pessoas, ensinada nas escolas, presente nos media, produzida na literatura, no cinema, na música e no teatro.
O português europeu, por sua vez, permanece mais próximo das suas origens arcaicas — e, aos olhos de muitos brasileiros, mais distante da realidade linguística do seu povo.
O que está realmente em jogo?
Mais do que uma disputa linguística, esta é uma questão de identidade nacional. Reconhecer o “brasileiro” como língua oficial é aceitar que o Brasil já não fala apenas uma versão do português — mas sim uma língua que é reflexo da sua alma coletiva, da sua mestiçagem cultural e da sua história independente, explica o Postal do Algarve.
É aceitar que as palavras mudam, os sons evoluem, e que as línguas — tal como os povos — não são estáticas. São organismos vivos. E o “brasileiro”, tudo indica, está vivo, forte e pronto para se afirmar no mundo como língua própria.
Palavras finais
A separação linguística entre Portugal e Brasil não significa uma rutura cultural. Antes pelo contrário: pode ser uma celebração da diversidade lusófona, um reconhecimento de que falar português não tem de significar falar da mesma maneira.
Seja hoje, amanhã ou nas próximas décadas, o nascimento oficial da língua “brasileira” parece cada vez mais uma questão de tempo — e de coragem política e cultural.
Como disse Fernando Venâncio, “é inevitável”. E talvez até desejável.
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