A costa de Peniche, com os seus penhascos imponentes e águas traiçoeiras, guarda segredos que o tempo teima em apagar. Entre eles, está a história do São João Baptista, um majestoso galeão português que, em 1622, desapareceu nas profundezas do Atlântico, levando consigo não apenas um tesouro incalculável, mas também centenas de vidas, sonhos e fragmentos de um império já em declínio. Este naufrágio, pouco lembrado nos livros de história, é um retrato pungente da ambição humana e da fragilidade perante a fúria do mar.
O último suspiro de um império em crise
O ano de 1622 não era um tempo de glória para Portugal. O país vivia sob o jugo da União Ibérica (1580-1640), governado por Filipe III de Espanha, e as riquezas das colónias eram sugadas para sustentar guerras distantes e uma corte espanhola ávida por ouro.
O São João Baptista, um navio imponente de 800 toneladas, partira de Goa, na Índia Portuguesa, carregado até às vigas com especiarias, sedas, diamantes, pérolas e barras de ouro e prata.
A bordo, seguiam também centenas de almas: marinheiros, soldados, mercadores e famílias que buscavam uma vida melhor no Reino.
Mas o Atlântico, naquela época, não era apenas uma rota comercial—era um campo de batalha. Piratas ingleses e holandeses espreitavam as embarcações ibéricas, e as tempestades eram tão impiedosas quanto os corsários. O São João Baptista, apesar de sua grandiosidade, navegava em águas traiçoeiras.
A tempestade que mudou o destino
No final de outubro de 1622, enquanto o galeão se aproximava da costa portuguesa, uma tempestade violenta desencadeou-se. Os ventos uivavam como almas penadas, e as ondas, altas como montanhas, arremessavam o navio contra os rochedos de Peniche. A tripulação, exausta após meses no mar, lutou desesperadamente para manter o controle, mas o destino já estava escrito.
Um relato da época, escrito por um sobrevivente anónimo, descreve o caos:
“As velas rasgaram-se como papel, e a escuridão engoliu o céu. As mulheres e crianças gritavam, agarradas a crucifixos, enquanto os homens tentavam, em vão, salvar a carga. O mar, indiferente, arrancou-nos tudo—até a esperança.”
O navio partiu-se ao meio. Centenas de corpos foram arrastados pelas correntes, e o tesouro—símbolo da riqueza de um império—afundou para sempre. Apenas um punhado de sobreviventes alcançou a costa, onde contaram uma história de horror que, hoje, quase ninguém lembra.
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O tesouro perdido e o silêncio da história
O que torna o naufrágio do São João Baptista especialmente fascinante é o que ele carregava: além do ouro e prata, havia artefactos únicos destinados à coroa e à Igreja. Entre eles, destacava-se um retábulo de jade e ouro, encomendado pelo vice-rei da Índia para o Mosteiro dos Jerónimos, e uma coleção de manuscritos raros que documentavam a presença portuguesa na Ásia.
Mas por que este naufrágio é tão esquecido? A resposta pode estar na própria época. Em 1622, Portugal estava mergulhado numa crise política e identitária. A perda do tesouro foi um golpe simbólico para um reino que já não governava a si mesmo. Além disso, a coroa espanhola, ocupada com rebeliões na Holanda e conflitos na Europa, pouco fez para investigar o desastre. O silêncio histórico, assim, tornou-se uma metáfora do esquecimento de um império outrora glorioso.
Um episódio paralelo: o naufrágio do São João (1552)
Para entender a magnitude da tragédia do São João Baptista, vale a pena recuar a 1552, quando outro navio homónimo—o São João—naufragou na costa sul-africana. A história deste navio, imortalizada no relato História Trágico-Marítima, é igualmente arrepiante.
O São João, carregado de pimenta e marfim, bateu contra os rochedos perto do Cabo da Boa Esperança. Os sobreviventes, incluindo mulheres e crianças, enfrentaram meses de caminhada sob o sol escaldante, atacados por animais selvagens e tribos hostis. Apenas 25 dos 600 passageiros sobreviveram. O relato do piloto Manuel de Mesquita Perestrelo, que sobreviveu ao inferno, descreve cenas de canibalismo e desespero:
“Comíamos raízes e cascas de árvores. Quando já não havia forças, alguns devoraram os mortos. O mar levou-nos a dignidade, mas a terra negou-nos a piedade.”
Este episódio, embora separado por 70 anos do naufrágio do São João Baptista, revela um padrão: a arrogância de desafiar o mar, a ganância por riquezas efémeras e o custo humano esquecido pela história oficial.
O legado submerso: entre a lenda e a ciência
Hoje, os restos do São João Baptista permanecem um mistério. Mergulhadores e arqueólogos já tentaram localizar o navio, mas as correntes fortes e a falta de registos precisos tornam a busca uma quimera. Contudo, a lenda persiste. Pescadores de Peniche contam que, em noites de tempestade, ouvem os sinos do navio ecoando no fundo do mar—um lamento fantasmagórico pelas almas perdidas.
O naufrágio também deixou lições amargas. Após 1622, a coroa portuguesa (já restaurada em 1640) começou a investir em navios mais resistentes e a evitar sobrecarregar as embarcações. Mas era tarde demais: o domínio dos mares já escapava para holandeses e ingleses.
Conclusão: quando o passado emerge das ondas
O naufrágio do São João Baptista não é apenas uma história de tragédia—é um espelho da condição humana. Fala-nos da ambição que nos leva a desafiar os limites, da fragilidade perante as forças da natureza e do modo como a história sepulta, nas suas entrelinhas, os dramas dos anónimos.
Nas palavras do poeta Fernando Pessoa, “O mar é uma memória sem fundo”. Talvez, algum dia, o mar devolva os segredos do São João Baptista. Até lá, resta-nos lembrar: por trás de cada tesouro perdido, há vidas que o tempo não apagou—apenas mergulhou no esquecimento.
Nota Final:
Este artigo é uma homenagem aos que pereceram no São João Baptista e a todos os navegantes anónimos cujas histórias jazem no fundo do mar. A costa portuguesa, com os seus segredos submersos, continua a ser um museu silencioso da nossa epopeia marítima—às vezes gloriosa, muitas vezes trágica, mas sempre humana.