A Humanidade está a intervir, de forma silenciosa, mas devastadora, num dos mecanismos mais vitais do planeta: a circulação dos oceanos. O alerta é lançado por Miguel Santos, biólogo marinho, investigador principal do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) e presidente da Associação Portuguesa de Oceanografia (APOCEAN), que adverte para as consequências profundas que o aquecimento global pode trazer à circulação termoalina — um processo que regula o clima mundial.
Segundo o especialista, a alteração desta corrente pode significar, no futuro, uma nova era glaciar na Europa, uma mudança tão radical quanto assustadora, capaz de transformar por completo a forma como conhecemos o nosso continente.
O motor invisível que regula o clima da Terra
Os oceanos não são apenas vastas extensões de água, são o coração pulsante do clima global. A chamada circulação termoalina — que depende das diferenças de densidade da água, influenciadas pela temperatura e salinidade — é um gigantesco motor natural. Nos polos, as águas mais frias e salgadas afundam, enquanto as mais quentes e doces sobem à superfície, num movimento contínuo que percorre todos os oceanos do mundo.
Este processo mantém o equilíbrio climático, transporta calor, regula estações e permite que regiões como Lisboa tenham invernos amenos, ao contrário de cidades na mesma latitude, como Nova Iorque, onde a neve é presença constante.
Contudo, este equilíbrio está em risco. O degelo dos glaciares, provocado pelo aquecimento global, faz aumentar o volume de água doce nos oceanos. E essa água, menos densa, deixa de afundar com a mesma intensidade, interrompendo o ciclo. O gelo, que funcionava como espelho refletor de calor, também está a desaparecer, acelerando ainda mais o aquecimento.
Corrente do Golfo: o escudo da Europa em risco
A corrente do Golfo, que transporta água quente do Golfo do México até ao Atlântico Norte, é uma das mais cruciais no equilíbrio climático europeu. Graças a ela, os invernos são mais suaves do lado europeu, enquanto a América do Norte enfrenta temperaturas gélidas.
Se esta corrente enfraquecer, a Europa receberá menos calor. O resultado poderá ser devastador: invernos rigorosos, quedas bruscas de temperatura e até a entrada numa nova era glaciar.
O risco não é apenas teórico. Cientistas de todo o mundo têm vindo a alertar para um possível ponto de rutura da AMOC (Atlantic Meridional Overturning Circulation), o sistema que engloba estas correntes. Um estudo recente, publicado na Geophysical Research Letters pelo Real Instituto Meteorológico dos Países Baixos e pela Universidade de Utrecht, projeta cenários inquietantes: Bruxelas poderá enfrentar temperaturas de -21°C caso a corrente colapse.
“Nós é que não nos vamos aguentar”
Apesar da gravidade do tema, Miguel Santos rejeita o alarmismo, mas não suaviza a mensagem: “Há quem diga que essa circulação pode parar. Eu não acredito nisso, mas acredito que está a diminuir de intensidade. E isso, por si só, pode provocar alterações profundas no clima. O sistema climático está intrinsecamente ligado ao oceano. Nós é que não estamos a perceber a dimensão do problema. Nós é que não nos vamos aguentar.”
O investigador sublinha que o planeta resistirá, de uma forma ou de outra. O que está em causa é a sobrevivência e a qualidade de vida da própria Humanidade.
O mar, esse gigante esquecido
A preocupação do investigador não se limita às correntes oceânicas. Para Miguel Santos, o mar continua a ser tratado como um depósito invisível — um espaço para onde se atira o que não se quer ver: sobrepesca, resíduos, plásticos, poluição.
Apesar de representar a maior parte da superfície terrestre e ser o pulmão silencioso que regula o clima e produz oxigénio, o oceano continua a ser um território desconhecido. Falta investimento, faltam recursos, faltam oceanógrafos.
“Há poucos oceanógrafos e temos um mar imenso. E não temos dinheiro para ir ao mar aberto, que continua quase desconhecido. A realidade é que as pessoas não sabem o que se passa no mar. E temos de dinamizar isso”, lamenta.
A APOCEAN procura justamente mudar este paradigma, aproximando o conhecimento científico da sociedade, sobretudo dos mais jovens, numa tentativa de despertar consciência para a importância vital dos oceanos.
Um futuro em aberto
O aviso é claro: não é o planeta que está em risco — somos nós, enquanto espécie. A Terra tem milhões de anos de resiliência e adaptações às mais diversas catástrofes naturais. A Humanidade, pelo contrário, é frágil e depende de um equilíbrio climático que está a ser destruído pelas suas próprias mãos.
“O mar vai aguentar-se. Nós é que não nos vamos aguentar. E não estamos a perceber isso”, conclui Miguel Santos.
Se nada for feito, escreve o ZAP, a corrente que durante milhares de anos manteve o equilíbrio climático poderá transformar-se no epicentro de uma crise sem precedentes, capaz de mergulhar a Europa no frio e de alterar para sempre a vida como a conhecemos.