Existem grandes mentiras que passaram por verdades. Um exemplo disso é sempre termos ouvido dizer que Portugal é um país de brandos costumes. Será mesmo assim?
As fake news (“notícias falsas”, em português) é um termo novo ou um neologismo usado para se referir a notícias fabricadas, que não têm por base a realidade, embora sejam apresentadas como estando factualmente corretas.
A atualidade política vive com esse drama, mas no passado também ocorreram “notícias falsas”, inverdades e mitos que passaram pela população como factos reais. No passado, os efeitos eram ainda mais devastadores para o conhecimento do povo.
A história fez-se em tempos com a comunicação verbal, do passa a palavra, com poucos elementos escritos a confirmarem-se como fontes credíveis. Ao longo da história, muitas pessoas acabaram por contribuir para a criação de ideias feitas, que por uns tempos se revelaram como parte da História do nosso país.
Mentiras da História de Portugal: Portugal é um país de brandos costumes
Por vezes, as mentiras repetidas frequentemente assumem um caráter pernicioso. São tidas como verdadeiras. Ora, isto comprova o pensamento do melhor cronista da cultura inglesa do século XX, “se todos aceitam a mentira, a mentira entra na história e torna-se verdade” (1984 – George Orwell).
Existem grandes mentiras que passaram por verdade e encaixaram na cultura popular ou em manuais da especialidade como momentos da História e do nosso país. O NCultura irá revelar um conjunto de artigos que mostram isso mesmo.
No presente artigo, iremos centrar-nos na afirmação de que “Portugal é um país de brandos costumes!”
Não é verdade que Portugal seja um país de brandos costumes, embora já todos tenham ouvido essa frase ao longo da sua vida. Ao longo da história, há diversos momentos que contrariam essa tese.
Por exemplo, nos séculos XIX e XX, milhares de pessoas foram mortas em guerras civis e revoluções. Esse chavão foi fruto de uma operação de ação psicológica, uma invenção do Estado Novo.
Século XIX foi agitado
Ao longo do século XIX, sucederam-se revoluções e várias lutas civis. Destes confrontos, resultaram diversas vítimas. Após o curto fogacho liberal que ocorreu em 1820, surgiu uma grande guerra que opôs os absolutistas liderados por D. Miguel e os constitucionalistas liderados por D. Pedro. Nestes confrontos que ocorreram de 1832 a 1834, participaram inclusivamente navios e mercenários estrangeiros.
Posteriormente, em 1836, ocorreu a revolução de setembro. Já na década seguinte, realizou-se uma nova guerra civil com intervenção exterior, a Patuleia. Mais tarde, já próximo do final do século, houve uma tentativa de revolução republicana, no Porto.
Embora frustrada, resultou numa dúzia de mortos que ficaram estendidos na Rua de Santo António. Além disso, ainda ficaram feridas quatro dezenas de pessoas.
Desta forma, facilmente se pode demonstrar que os costumes portugueses nunca foram brandos. Se recuarmos no tempo, podemos ainda recordar outros episódios históricos, como os sinistros clarões das fogueiras da Inquisição ou as Invasões Francesas de há 200 anos em que ocorreram diversos linchamentos na rua.
Os linchamentos de pessoas que eram suspeitas de “jacobinismo” (trata-se de uma doutrina revolucionária do Clube dos Jacobinos, associação que foi fundada em 1789, em Paris). Tratava-se de uma doutrina que se opunha à realeza e à Igreja e que fazia a defesa da instauração de uma democracia igualitária.
Nesse mesmo espaço temporal, realizou-se o esquartejamento do general Bernardim Freire de Andrade, quando se encontrava em Braga e ordenou o recuo estratégico das milícias para o Porto.
A Revolta de 14 de maio de 1915
O Estado Novo criou o estereótipo do “país de brandos costumes”, mas estes acontecimentos comprovam o contrário. Essa estratégia serviu para contrabalançar a tradição portuguesa da violência política.
O Estado Novo queria fazer a cabeça das pessoas e moldá-las a seu gosto. No entanto, na história, não faltam episódios que contrariam a tese de que se está num “país de brandos costumes”.
No dia 14 de maio de 1915, ocorreu um golpe de estado no nosso país. Esse momento foi liderado por Álvaro de Castro e pelo general Sá Cardoso. Estes homens lideraram um golpe que teve como objetivo fazer a reposição da plena vigência da Constituição Portuguesa de 1911 e ainda o propósito de derrubar um governo que então era presidido pelo general Pimenta de Castro.
O grupo tinha o nome de “Jovens Turcos”. Estas pessoas ousaram dirigir-se contra a “ditadura” de Pimenta de Castro. Cerca de três meses e meio antes desse momento, o presidente Manuel de Arriaga tinha mandatado este general governar com o Parlamento encerrado.
Jovem Turquia era o nome de uma loja maçónica da época. Alguns políticos, civis e militares faziam parte deste grupo. O objetivo destas pessoas era repor a plena vigência da Constituição de 1911.
O seu propósito seria alcançado, levando no imediato à transmissão dos poderes para uma Junta Constitucional. Esta Junta Constitucional era constituída por cinco “jovens turcos”. Estas pessoas eram defensoras da entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial, uma medida preconizada pelo líder do Partido Democrático, Afonso Costa.
Nessa manhã de céu azul, a capital portuguesa acordou ao som do canhão. Em Lisboa, erguiam-se barricadas, num contexto onde os vizinhos combatiam entre si. Havia soldados pelo meio e bandeiras nacionais dos dois lados da barricada.
No final desse dia, confirmou-se que muito sangue tinha sido derramado e encontrava-se espalhado pelas valetas. Nesse dia, foram confirmados 200 mortos. Feridos foram mais de 1000 pessoas.
Este quadro sangrento aconteceu em Lisboa, há pouco mais de cem anos e comprova que Portugal não é um país de “brandos costumes”.
O Senador Linchado
Existem mais exemplos que facilmente conseguem derrubar a tese da “brandura” dos hábitos portugueses. Esta ideia de que Portugal é país de “brandos costumes” foi posta a circular pelo Estado Novo salazarista.
No dia 17, a Junta Constitucional preparava-se para transmitir o poder a um novo Governo, que seria chefiado por João Chagas, que era dirigente do PD. No entanto, João Chagas foi atingido a tiro num olho no próprio dia. O autor do disparo foi João José de Freitas, um homem que era advogado e senador. O momento aconteceu quando ambos se encontravam no interior do comboio.
Eles estavam parados na estação ferroviária do Entroncamento e o comboio fazia o percurso do Porto para Lisboa. Devido ao disparo, João Chagas ficou parcialmente cego. Já João José de Freitas acabou por ser linchado no local por um grupo de populares que se encontravam na estação. Entre eles, estava um soldado da GNR.
Já nos dias 4 e 5 de outubro de 1910 tinha acontecido outro evento que comprova que é errado pensar que Portugal é um país de brandos costumes. Morreram entre 60 e 70 pessoas em Lisboa, na revolução que derrubou a Monarquia e que levou à implantação da República. Em termos de feridos, o número foi ainda mais expressivo. Foram 500 pessoas que tiveram ferimentos.
As barricadas foram erguidas na Rotunda (Marquês de Pombal). Além disso, um cruzador bombardeara o Palácio das Necessidades. Nesse momento, estava D. Manuel II a jogar bridge com alguns cortesãos, mas devido ao susto o jovem rei não teve tempo para ganhar o jogo de cartas.
Um dos obuses da Rotunda pegou fogo a um prédio. Os tiros foram disparados no enfiamento da Avenida de Liberdade. Paiva Couceiro comandava as forças leais à Monarquia. No entanto, estas já eram pouco expressivas.
Primeiro, as forças comandadas por Paiva Couceiro investiram pelo lado de Campolide. Posteriormente, as forças leais à Monarquia investiram a partir do alto do Torel.
O Rossio vivia um contexto insólito. Tinha sido transformado num acampamento de soldados, com as armas ensarilhadas. O rei, a mãe e a avó tiveram de passar a noite em Mafra, local que serviu de passagem para seguirem o seu percurso até à Ericeira.
Daí, embarcaram rumo ao exílio. Eles foram perseguidos por revolucionários que os seguiam em automóveis, fazendo o percurso pela estrada do Sobreiro.
O Rei de Portugal e o Presidente foram assassinados
D. Carlos I foi assassinado a 1 de fevereiro de 1908, em pleno Terreiro do Paço. D. Manuel II foi o seu sucessor. O penúltimo rei de Portugal estava acompanhado do filho, o príncipe Luís Filipe (irmão de D. Manuel II), que era o legítimo herdeiro do trono.
Ambos estavam a fazer o percurso de regresso ao palácio de Vila Viçosa, pouco após terem desembarcado do vapor do Barreiro. Eles seguiam num landau (um antigo tipo de carruagem de dois bancos situados frente a frente), quando foram assassinados a tiro a meio da tarde desse dia.
O eco dos disparos abalou a vida política nacional. Os disparos foram realizados por dois membros da sociedade secreta Carbonária, Manuel Buíça e Alfredo Costa. Esse momento serviu para anunciar que o advento da República estava para breve, mas o regicídio foi considerado, na altura, pelos lisboetas, quase como algo de natural.
Atualmente, existe o conhecimento de que esse momento se tratou efetivamente de um plano articulado. Esse episódio envolveu os carbonários, mas também muitas outras pessoas. Parte delas encontrava-se altamente colocada.
Nesse ano, em julho, o New York Times publicou uma reportagem onde se podia ler: “Diz-se que a rainha Amélia reconheceu num dos assassinos um proeminente líder político, mas guarda firmemente o seu segredo.”
Implantada já a República, grupos de monárquicos exilados em Espanha entraram em pé-de-guerra pelo Norte de Portugal, nomeadamente entre 1911 e 1912. Os grupos de monárquicos cercaram vilas, investiram sobre aldeias, aliciaram camponeses e pastores para a causa derrotada. Posteriormente, entre 1915 e 1925, foram diversos os movimentos militares em defesa da República democrática ou contra ela.
Sidónio Pais liderou um dos golpes triunfantes, algo que inauguraria um ano de ditadura no final de 1917, mas que terminaria com uma morte a tiro, na Estação do Rossio. Sidónio foi assassinado. O Presidente-Rei, como Fernando Pessoa lhe chamara, falecera dessa forma cruel. Em menos de 11 anos, ocorreu o segundo assassínio de um Chefe de Estado português, após o regicídio que vitimara D. Carlos.
O esquecimento de uma Guerra
Ainda o som dos tiros que tinham matado Sidónio ecoavam no Rossio e na outra ponta da linha férrea que dali partia no Porto o regime monárquico era restaurado.
Na capital portuguesa, os republicanos formavam um executivo obedecendo à Constituição de 1911. No entanto, as Juntas Militares conservadoras não se conformaram com o procedimento e fizeram a exigência de “um governo de força”.
As Juntas Militares conservadoras contavam com o apoio dos civis que para isso giravam em torno do Integralismo Lusitano, movimento de extrema-direita.
O deposto rei D. Manuel II acompanhava tudo com a máxima atenção e fazia-o a partir do seu exílio inglês. Ele até tinha dado luz verde à movimentação monárquica. O objetivo dos “insurretos” era estender as suas movimentações por Portugal, de norte a sul.
Contudo, as Juntas Militares de Lisboa revelavam-se divididas. No dia 22 de janeiro de 1919, 7 dezenas de monárquicos (sensivelmente) hastearam na antena telegráfica do alto de Monsanto a icónica bandeira azul e branca.
Por ali, estas pessoas acabaram por ficar cercadas e foram desfeiteadas por militares (acompanhados por civis que se mostravam leais à República). No entanto, não foi aqui que terminou a guerra civil de 1919.
No dia 13 de fevereiro, após combates no litoral centro do País, as forças republicanas entraram na cidade do Porto. Foi na Invicta que puseram termo à efémera Monarquia do Norte.
Uma Noite Sangrenta
A noite de 19 de outubro de 1921 ficou para a história pelas piores razões. Esta data ficou conhecida como Noite Sangrenta (ou por Camioneta Fantasma). Nessa noite, ocorreu algo macabro.
Uma pequena camioneta fez um percurso que deixou marcas e não foram dos pneus. Tratava-se de uma camioneta de caixa aberta. A viatura encontrava-se tripulada por marinheiros e soldados da GNR.
Na viagem que fez realizou paragens estratégicas, recolheu figuras destacadas da vida política, quando estas se encontravam nas suas casas, nomeadamente o chefe do governo. Enquanto a carrinha fez o percurso conforme o plano traçado, essas pessoas foram sendo recolhidas, uma a uma. Posteriormente, essas pessoas foram abatidos a tiro, mesmo na rua, num contexto em que se ouviam insultos e sevícias.
Os sublevados tinham Abel Olímpio como chefe. Este cabo marinheiro tinha a alcunha de Dente de Ouro. Estas pessoas assassinaram o primeiro-ministro António Granjo, mataram o Machado Santos (antigo herói da Rotunda), abateram Carlos da Maia (o ex-ministro da Marinha e ex-presidente da Câmara de Lisboa), além de terem matado outras figuras destacadas da época.
A Noite Sangrenta foi um evento que não ficou completamente esclarecido para os historiadores. Este acontecimento pode ter sido motivado pela demissão de Liberato Pinto, da chefia do Governo e do comando da GNR. No entanto, também foi referida a hipótese de conspiração monárquica.
Explorou-se a possibilidade de se ter tratado de uma movimentação orquestrada por setores do Partido Democrático. Tratava-se de um partido que tinha tido uma posição dominante ao longo dos 16 anos da Primeira República. Seria uma forma de vingança sobre inimigos políticos.
O posicionamento ideológico de cada um pode fazer com que se incida sobre uma determinada hipótese. Chegou a ser criada uma peça de teatro e uma série de TV que trouxeram novos dados sobre esta tragédia. No entanto, as explicações acabam sempre por ser orientadas pelos seus autores.
Anos 20 foram verdadeiramente ‘Loucos’
Várias tentativas de revolução frustradas resultaram em vários mortos e feridos. Em 1926, foi instaurada uma ditadura que teve a duração de quase meio século. Foram 48 anos. No entanto, o triunfo da extrema-direita não foi pacífico, uma vez que as fações militares se confrontaram ao longo dos meses de maio e de junho, com confrontos materializados com tiroteios.
Os “velhos republicanos” pretendiam inverter a situação nos primeiros anos da ditadura. As tentativas foram frustradas e houve mais vítimas, especialmente nos combates que se realizaram em fevereiro de 1927. Os confrontos estenderam-se do Porto a Lisboa.
No final dos combates, constatou-se a realidade indesejada. Além das tropas da ditadura terem vencido, os mortos multiplicaram-se. As contagens indicaram 70 mortos na cidade Invicta e 50 mortos na capital. A esses números há que adicionar os milhares de feridos nas duas cidades.
Após quatro anos terem passado, a ditadura já se encontrava instalada de forma consolidada. No entanto, houve um estertor do chamado “Reviralho” que ocorreu na Madeira e nos Açores.
Salazar encontrava-se sentado no poder em 1936. Nesse ano, os marinheiros de dois navios de guerra revoltaram-se no Tejo. O canhoneio do forte de Almada acabou por fazer 10 vítimas mortais. A maioria dos marujos revoltosos serviram como modelos para “inaugurar” o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, involuntariamente, claro.
O Tarrafal era conhecido por ser um inferno tropical. Este espaço singular foi criado por um regime que utilizava um tom paternalista para impor a sua “verdade”, que tinha de ser indiscutível.
A polícia política (chamada de PVDE, PIDE e DGS) operava com toda a facilidade e fazia-o em nome dos “brandos costumes”. Por isso, prendia pessoas. Se necessário, torturava e até podia fazer desaparecer os oposicionistas do regime.