Fique a conhecer as mentiras que fizeram história, como «o nosso país foi o primeiro a abolir a pena de morte». Será mesmo assim?
Atualmente, é bastante conhecido o conceito fake news (“notícias falsas”, em português). Este termo é frequentemente usado para se referir a notícias fabricadas. Estas notícias são apresentadas como estando factualmente corretas, embora não tenham por base a realidade.
A atualidade política vive com esse drama. No entanto, pior foi quando estas “notícias falsas” ocorreram no passado, quando inverdades e mitos que passaram para a população como factos.
No passado, os efeitos eram ainda mais devastadores para o conhecimento do povo. A história chegou a ser construída com a comunicação verbal, do passa a palavra, com poucos elementos escritos a confirmarem-se como fontes sólidas e credíveis.
Ao longo da História, muitas pessoas contribuíram para a criação de ideias feitas, que se revelaram como parte da História do nosso país, pelo menos por uns tempos.
É comum pensar que as mentiras repetidas frequentemente assumem um caráter pernicioso e que acabam por ser tidas como verdadeiras. Esta tese confirma o pensamento de George Orwell.
Aquele que foi o melhor cronista da cultura inglesa do século XX chegou a defender:
“Se todos aceitam a mentira, a mentira entra na história e torna-se verdade” (1984 – George Orwell).
Existem grandes mentiras na história de Portugal, ideias que circularam tantas vezes que passaram como momentos da História do nosso país por verdades e encaixaram na cultura popular ou até em manuais da especialidade.
Mentiras da História de Portugal: O nosso país foi o primeiro a abolir a pena de morte!
É mentira afirmar que Portugal foi o primeiro país a abolir a pena de morte! Não foi o primeiro, mas é inegável que tenha sido dos primeiros. Outras nações fizeram-no à frente de Portugal, mais precisamente a Venezuela, San Marino e o Estado norte-americano do Michigan.
Apesar de estar comprovado que foram estes países (e Estados) a abolir a pena de morte primeiro, a ideia de que Portugal foi o pioneiro povo da clemência encontra-se enraizada no nosso espírito.
Apesar de termos ficado no pelotão, não fomos o primeiro povo a fazê-lo. Estar entre os primeiros a abolir a pena capital já é algo bastante positivo. No entanto, houve outros povos a chegar primeiro à conclusão de que ninguém tem o direito de roubar a vida a outrem, seja sobre que pretexto for.
Entre os países que superaram o nosso país nesta questão está a Venezuela. Este país aboliu a pena de morte em 1863. Portanto, fê-lo cerca de quatro anos antes de Portugal o ter feito.
O ducado italiano da Toscana também se antecipou a Portugal nesta questão e fê-lo em 1786. Já o minúsculo San Marino provou que as dimensões territoriais reduzidas não são impeditivas de se realizarem grandes gestos. San Marino aboliu a pena de morte em 1865. Por isso, este pequeno país também superou Portugal.
Portugal foi pioneiro noutra questão. Foi o primeiro Estado a inscrever essa proibição na Constituição. Isso já se pode dizer sobre Portugal. No entanto, há episódios que podem e devem envergonhar-nos. Em 1917, um soldado português foi fuzilado na frente de combate da Primeira Guerra Mundial.
Foi um deputado do partido governamental que propôs a abolição da pena de morte para todos os tipos de crimes. Ele fê-lo na sessão parlamentar portuguesa, mais precisamente no dia 10 de março de 1852. Consequentemente, propôs a abolição do “hediondo ofício de carrasco”.
Nessa época, era Saldanha que Governava, do Partido Regenerador. A proposta foi bem acolhida e aceite logo no momento. Essa aceitação levou à assinatura de vários proponentes.
No entanto, acabou por não reunir o consenso necessário para a sua aprovação. A aprovação não surgiu nessa sessão legislativa nem sequer na sessão legislativa do ano seguinte.
Foi no dia 1 de julho de 1867 que a abolição da pena de morte foi aprovada, para todos os crimes, à exceção dos militares. Ora, essa decisão fez com que o carrasco ficasse desempregado.
“Desde hoje, Portugal está à frente da Europa. Vós, os portugueses, não haveis cessado de ser navegadores intrépidos. Ides sempre para a frente, outrora no Oceano, hoje na Verdade. Proclamar princípios é ainda mais belo do que descobrir mundos.” Carta de Victor Hugo a Brito Aranha, de 15 de julho de 1867.
Se por acaso existissem “queixas” poderosas contra algum militar, não seria o carrasco a colocar-lhe um fim à vida. Recorde-se que a abolição da pena de morte foi aprovada para todos os crimes, com exceção dos militares. Nesse caso, o militar seria fuzilado por um pelotão de execução.
A lei assim se manteve até março de 1911. Foi no tempo da República, que se decidiu que a abolição fosse extensiva aos militares. Estava João Pinheiro Chagas no Governo quando foi tomada essa decisão.
Entretanto, a I Guerra Mundial rebentava e Portugal entrava no conflito. Esta realidade excecional era razão suficiente para se considerar que a pena deveria ser reintroduzida. No entanto, apenas aconteceria “em caso de guerra com país estrangeiro” e desde que esta fosse cumprida no teatro de operações.
Ora, essa visão foi respeitada. Em setembro de 1917, aconteceu a fatalidade. Um soldado português foi fuzilado junto das trincheiras da frente de batalha. João Augusto Ferreira de Almeida, que integrava o Corpo Expedicionário Português, foi acusado de espionagem e já não regressou para contar o processo sumário de que fora objeto.
Infelizmente, esse episódio não foi totalmente esclarecido e desconhece-se se realmente Ferreira de Almeida passava informações aos alemães. Seria algo difícil de concretizar para o português, embora ele possa ter tido acesso a matéria confidencial.
Certo, é que ele não escapou ao fuzilamento e disso não restam dúvidas. Esse episódio terá servido para fazer passar a ideia (principalmente junto dos aliados franceses e ingleses) de que Portugal tinha um exército bem organizado. Ora, desta forma, a abolição total da prática execrável apenas entraria em vigor em 1976, após o 25 de Abril.
No entanto, para a história fica a data da última execução de um civil. Esta acontecera em abril de 1846, em Lagos. A última execução de uma mulher remonta a 1772.
Portugal não foi o primeiro a fazer a abolição da pena capital, mas foi dos primeiros. Alguns países anteciparam-se. Entre eles, estava um dos Estados que forma os EUA, o Michigan.
Curiosamente, nesta nação poderosa, ainda há Estados que continuam a permitir a pena de morte. Neste país, existem Estados que recorrem à injeção letal (ou até a outros métodos equivalentes) para terminar com a vida de determinados criminosos. A pena de morte continua a ser prática comum em muitos países.