A imagem de Lisboa no final dos anos 60 é bem diferente daquela que conhecemos hoje. À margem da prosperidade e do desenvolvimento prometido pelo regime, milhares de portugueses viviam em condições precárias, em bairros de lata que se espalhavam pelas periferias da capital. Estes bairros improvisados eram, na verdade, o lar de milhares de famílias que, vindas de zonas rurais ou das colónias, chegavam a Lisboa em busca de melhores oportunidades. No entanto, o sonho de uma vida melhor revelava-se num cenário de habitações improvisadas e de condições de vida extremamente degradantes, explica o artigo publicado pela VortexMag.
O crescimento dos bairros de lata e o problema habitacional na primeira metade do século XX
O fenómeno dos bairros de lata começou a ganhar forma nas últimas décadas do século XIX, com o aumento das migrações internas e o início do processo de industrialização nas principais cidades, nomeadamente Lisboa e Porto.
De facto, à medida que o país se tornava mais urbano, a incapacidade de o mercado habitacional acompanhar esta nova realidade tornava-se evidente. Em bairros históricos como Alfama, Mouraria ou o Barredo, as condições de habitação já eram precárias, mas o aumento da procura levou a que os preços subissem, excluindo cada vez mais famílias e obrigando-as a buscar alternativas fora dos centros tradicionais.
Foi neste contexto que surgiram os primeiros “bairros de lata”, inicialmente com construções esparsas e rudimentares, mas que rapidamente se expandiram, com terrenos baldios a serem ocupados com barracas e construções improvisadas.
Entre os pioneiros a denunciar esta situação estavam figuras influentes como o político Augusto Fuschini e o higienista Ricardo Jorge, que alertavam para os riscos sanitários e sociais de deixar esta situação crescer sem intervenção.
Primeiras iniciativas de habitação social e as dificuldades de implementação
A resposta do Estado à crise habitacional, contudo, foi lenta e insuficiente. Só em 1918, durante o breve consulado de Sidónio Pais, surgiram as primeiras políticas de apoio à construção de habitação económica. Posteriormente, nos anos 30, com o advento do Estado Novo, criou-se o regime das “casas económicas”, com o intuito de reproduzir a estrutura de aldeias dentro da cidade, fomentando a ideia de um Portugal rural que servisse de modelo para a vida citadina.
Em 1938, foram introduzidas as “casas desmontáveis”, feitas de chapas de fibrocimento, que pretendiam ser uma solução provisória. No entanto, estas habitações temporárias muitas vezes tornavam-se permanentes, prolongando a precariedade e a falta de conforto para quem lá vivia.
Nos anos 40, surgiram novas tentativas de amenizar a situação, mas o número de bairros de lata não parava de crescer. Em 1945, com a criação das “Casas para Famílias Pobres”, procurava-se dar resposta à crescente exclusão dos mais desfavorecidos, embora os critérios fossem tão limitados que muitas famílias acabavam excluídas.
A situação culminava na década de 50 com o projeto de construção de habitações sociais nos Olivais, que representava uma mudança significativa na conceção dos bairros sociais, mas que ainda assim deixava muita gente sem opções.
Década de 60: o agravamento da crise habitacional e o desespero das famílias
Nos anos 60, a situação já era alarmante, e o aumento do número de barracas refletia a profunda crise habitacional. Em 1963, um inquérito do Diário Popular revelou que o número de barracas aumentara drasticamente, ultrapassando as 50 mil.
As reportagens, que expunham as condições deploráveis destas habitações, foram alvo de censura, mas deixaram claro que, com a imigração e o crescimento populacional, a crise habitacional era uma questão que não podia mais ser ignorada.
O fenómeno dos bairros clandestinos, que eram construídos sem qualquer tipo de licenciamento, ganhou força nesta década, especialmente para aqueles que tinham condições mínimas de investimento e procuravam alternativas menos degradantes do que as barracas.
Ao mesmo tempo, a emigração massiva para a Europa oferecia algum alívio, pois muitos dos que normalmente se fixariam nas cidades acabavam por partir em busca de oportunidades no estrangeiro. Contudo, essa “válvula de escape” não foi suficiente para travar o aumento dos bairros de lata em Lisboa.
O papel do 25 de Abril e o SAAL: uma nova esperança para as famílias dos bairros de lata
Com o 25 de Abril de 1974, surge um novo capítulo na história da habitação em Portugal. O Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), criado no período pós-revolucionário, representava uma visão radical e inovadora para resolver o problema dos bairros de lata. Este programa permitia que os próprios habitantes organizassem comissões e colaborassem com equipas técnicas na construção de habitações dignas. No entanto, o projeto enfrentou resistência, sendo considerado demasiado “revolucionário” para o novo sistema representativo e, em 1976, acabou por ser suspenso.
Apesar disso, o SAAL plantou a semente de uma mudança significativa e introduziu um modelo de habitação participativa e comunitária que até então era desconhecido em Portugal. Diversos projetos foram concluídos, mas a maioria acabou por ficar pelo caminho, deixando muitas promessas por cumprir.
A persistência dos bairros de lata nas décadas recentes e o futuro da habitação
Embora muito tenha mudado, ainda hoje persistem problemas habitacionais. A migração crescente dos PALOP e de outras zonas do mundo, aliada ao aumento do custo de vida e à gentrificação das grandes cidades, contribuiu para uma nova realidade de exclusão habitacional.
Os poucos bairros de lata que ainda restam nas periferias de Lisboa, como na Amadora e no Seixal, são lembretes do fosso entre os custos do mercado imobiliário e as capacidades financeiras de grande parte da população. O aumento do preço das rendas e a falta de acessibilidade à habitação para quem tem rendimentos mais baixos são desafios que refletem uma crise habitacional latente.
Portugal encontra-se, uma vez mais, perante um desafio estrutural que exige não só vontade política, mas também uma forte intervenção do Estado na criação de soluções habitacionais a longo prazo. O direito à habitação é um direito básico, mas para muitos ainda permanece fora de alcance. E assim, os bairros de lata, que fazem parte de um passado que parecia ultrapassado, tornam-se um sinal da necessidade urgente de políticas habitacionais inclusivas e sustentáveis.
No futuro, resta a esperança de que, com maior intervenção e consciência social, se possa finalmente virar esta página e garantir uma habitação digna a todos os cidadãos.