A região da Ribeira do Sado, que hoje se destaca pela sua paisagem fértil e pelo cultivo de arroz, tem uma história profundamente marcada pela resistência e pela mistura de culturas. Durante séculos, esta área, que se estende pelo vale do rio Sado desde Alcácer do Sal até Grândola, era um território difícil de habitar, temido pelo seu ambiente insalubre e pelas doenças que ali proliferavam, como o paludismo.
Um território de dificuldades
As charnecas alagadas e as águas estagnadas criavam o ambiente ideal para a proliferação do mosquito responsável pela transmissão do paludismo, ou febre terçã.
Esta doença, endémica na região até ao início do século XX, fazia com que a população evitasse estabelecer-se de forma permanente. Assim, a região era habitada sobretudo por trabalhadores sazonais, que aproveitavam o rio Sado como a principal via de comunicação e transporte de mercadorias.
Apesar das condições adversas, a extração de sal tornou-se a principal atividade económica da região entre os séculos XVI e XX. O sal, utilizado sobretudo para a conservação de alimentos, era uma mercadoria essencial para o comércio marítimo.
Porém, a necessidade de mão-de-obra persistente para sustentar esta atividade levou à fixação de populações que estavam, de alguma forma, adaptadas ao ambiente hostil.
A chegada de escravos africanos
É neste contexto que se explica a presença de escravos africanos na Ribeira do Sado. Registos históricos indicam que, já no século XVI, havia uma percentagem significativa de pessoas de origem africana na região.
Estes escravos eram comprados por proprietários de terras e enviados para trabalhar nos campos e salinas.
Há quem atribua esta prática ao Marquês de Pombal, mas documentos da época da Inquisição e registos paroquiais mostram que a presença de africanos na região antecede largamente o seu governo.
Com o tempo, esta população foi-se integrando e misturando com os alentejanos locais, dando origem aos chamados “mulatos do Sado”.
Cancioneiros e memória popular
Os traços africanos desta comunidade foram registados em cancioneiros populares, como demonstra uma das quadras mais conhecidas:
“Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta.
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.
Quem quiser ver moças
Da cor do carvão
Vá dar um passeio
Até São Romão.”
(do cancioneiro popular de Alcácer do Sal, Alentejo, sul de Portugal)
Estes versos não só documentam as características físicas desta população, como revelam a surpresa ou o fascínio que causavam na época. Outras referências populares mencionam as “moças da cor do carvão”, ilustrando como as influências africanas se tornaram parte da identidade cultural da região.
O legado dos “carapinhas do Sado”
Hoje, a população da Ribeira do Sado é fruto de séculos de miscigenação. A mestiçagem diluiu muitos dos traços mais evidentes da herança africana, mas ainda é possível observar características físicas que evocam a África, como o tom de pele mais escuro e os cabelos encaracolados, que valeram aos habitantes locais a designação de “carapinhas do Sado”.
Apesar das comparações frequentes com cabo-verdianos, estas comunidades não têm qualquer ligação às ilhas crioulas. São, de facto, descendentes diretos dos escravos africanos trazidos para a região pelos proprietários de terras, e cuja presença ajudou a moldar a história e a cultura do Sado.
A luta contra o paludismo
A erradicação do paludismo na Ribeira do Sado foi um processo lento, que apenas se concretizou na primeira metade do século XX, com o avanço da medicina e das campanhas de saúde pública. Até então, a doença condicionava severamente a vida na região, sendo responsável por altas taxas de mortalidade. Este factor explica por que razão a população da Ribeira do Sado nunca foi muito numerosa até tempos recentes.
A importância do cultivo do arroz
Com a progressiva eliminação do paludismo, a Ribeira do Sado transformou-se num dos maiores polos de cultivo de arroz em Portugal. As terras alagadas, outrora consideradas insalubres, tornaram-se produtivas, ajudando a revitalizar a economia local e a fixar populações na região.
Preservar a memória
A história dos mulatos do Sado é um capítulo fascinante da história portuguesa, que combina resiliência, miscigenação e adaptação a condições adversas. Preservar esta memória é essencial para compreender como diferentes culturas e povos contribuíram para moldar a identidade única do Alentejo e, em particular, da Ribeira do Sado.
Hoje, os habitantes da região são testemunhos vivos de uma herança que transcende fronteiras e que celebra a riqueza da diversidade cultural de Portugal. A Ribeira do Sado, com as suas paisagens serenas e história vibrante, continua a ser um local onde o passado e o presente se entrelaçam de forma inesquecível.