O abandono de animais em Portugal já não se traduz apenas na imagem de cães deixados acorrentados em terrenos vazios ou a vaguear pelas ruas. Hoje, o cenário mudou: são os gatos que surgem em maior número como vítimas de abandono, revelando um novo padrão preocupante que merece atenção urgente.
A Liga Portuguesa dos Direitos do Animal (LPDA), que acompanha esta realidade diariamente, garante que houve avanços. A criminalização do abandono em 2015 trouxe uma maior consciência social, e hoje já ninguém pode alegar desconhecimento: abandonar um animal é crime. Mas, apesar da evolução na lei e da mudança de mentalidade, os números e os factos revelam que o problema persiste — apenas com uma nova face.
O abandono de gatos: uma epidemia silenciosa
Se nas ruas de Lisboa já é raro ver cães abandonados, os gatos multiplicam-se em número alarmante. Muitos destes felinos surgem em colónias que já tinham sido controladas há anos, todos esterilizados, e que agora voltam a crescer. O detalhe mais preocupante? São animais meigos, dóceis, habituados ao colo e à presença humana — sinais claros de que tiveram um lar e foram depois descartados.
Um gato de rua tende a ser desconfiado, arisco, desconfortável com pessoas. Estes não. Estes procuram afeto, seguem transeuntes, miam à porta das casas. São os novos invisíveis do abandono: silenciosos, vulneráveis, quase sempre condenados se não houver quem os salve.
Cães ainda são deixados para trás fora dos grandes centros
Se na Grande Lisboa os cães já não são o abandono mais comum, a realidade muda quando se percorrem 40 ou 50 quilómetros em direção ao interior. Aí, continuam a surgir cães deixados ao acaso, a vaguear por estradas nacionais, muitas vezes em estado de magreza extrema ou vítimas de maus-tratos prévios.
A diferença regional mostra que o abandono não é apenas um problema de consciência individual, mas também de contexto social e cultural. Nas áreas mais urbanas, onde há mais fiscalização e mais associações, o fenómeno começa a mudar de contornos. Nas zonas rurais, onde a vigilância é menor, o abandono de cães ainda é uma prática mais visível.
A lei existe, mas não chega
Nos últimos dez anos de criminalização, foram registados 6.711 crimes e mais de 3.000 suspeitos identificados. Contudo, as condenações continuam a ser poucas, e o abandono, uma prática recorrente. Para muitas pessoas, a lei ainda não assusta o suficiente, porque as consequências reais parecem leves quando comparadas com o impacto brutal na vida dos animais.
O abandono, recorda a LPDA, não é apenas um ato de crueldade. É uma demonstração de falha ética e de falta de empatia que envergonha qualquer sociedade que se queira moderna e justa.
Associações sobrecarregadas: vidas em lista de espera
As associações de proteção animal vivem todos os dias entre o dever de salvar e a impotência de não conseguir ajudar todos. Muitas funcionam apenas com voluntários, que acumulam horas de trabalho não remunerado, muitas vezes sacrificando vida pessoal e descanso.
“Todos os dias nos chegam pedidos, todos os dias surgem novas urgências. Queríamos poder abrir as portas a todos os animais, mas é impossível”, desabafa Florbela Chaves, vice-presidente da LPDA. E, enquanto não há espaço nem recursos suficientes, há animais que ficam literalmente em lista de espera pela vida.
A solução está em nós: responsabilidade e prevenção
Não basta criminalizar. É preciso educar, sensibilizar e prevenir.
- Esterilização em massa: única forma eficaz de travar a reprodução descontrolada de gatos e cães, evitando colónias que crescem sem parar.
- Adoções responsáveis: não basta adotar por impulso; um animal é um compromisso para 10, 15 ou até 20 anos.
- Apoio social: muitas famílias abandonam animais porque não conseguem suportar despesas veterinárias ou alimentares. Programas de apoio público seriam uma resposta fundamental.
O Dia Internacional do Animal Abandonado: um espelho da sociedade
Hoje, no Dia Internacional do Animal Abandonado, não se celebra nada. Recorda-se, antes, uma ferida aberta. O abandono não é um problema dos animais — é um problema humano, social e cultural.
Cada gato deixado numa colónia, cada cão largado num campo vazio, é o reflexo de um falhanço coletivo. A mudança só acontecerá quando deixarmos de ver os animais como “coisas” substituíveis e os reconhecermos como aquilo que realmente são: vidas com valor próprio, que sentem dor, medo, alegria e amor.
Enquanto houver abandono, explica o Postal do Algarve, não podemos dizer que vivemos numa sociedade civilizada. O futuro depende de uma escolha simples, mas decisiva: cuidar ou virar costas.
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