No ano de 1245, o reino de Portugal foi palco de um dos acontecimentos mais marcantes da sua história: a destituição do rei D. Sancho II, um evento que combinou intriga política, disputas familiares e intervenção papal. Este episódio singular ilustra como a instabilidade interna, aliada a interesses externos, pode mudar o curso de uma nação.
A infância de D. Sancho II e a ascensão ao trono
D. Sancho II tornou-se rei de Portugal em 1223, aos 14 anos, sucedendo ao seu pai, D. Afonso II. Desde cedo, demonstrou ser um líder valente no campo de batalha, dedicando grande parte do seu reinado à reconquista cristã, em luta contra os muçulmanos.
Durante o seu reinado, cidades e castelos foram conquistados, ampliando o território nacional. Contudo, o foco exclusivo na guerra levou-o a negligenciar a administração interna do reino, permitindo que o país mergulhasse na desordem.
Bandos de salteadores proliferavam, e a justiça era quase inexistente. Nobres e bispos, descontentes, acusavam o rei de “não fazer justiça nenhuma”. Esta situação de caos foi o primeiro sinal de que o reinado de D. Sancho II enfrentaria grandes desafios.
O casamento controverso
O mal-estar com D. Sancho II agravou-se em 1240, quando este casou com D. Mécia Lopes de Haro, uma aristocrata espanhola, prima do rei e viúva jovem. Filha de Lopo Dias de Haro, um poderoso nobre da Biscaia, e de D. Urraca, filha bastarda de Afonso IX de Leão, D. Mécia trouxe consigo uma rede de alianças familiares, mas também controvérsias.
Encantado pela beleza de Mécia, D. Sancho II concedeu-lhe vastos territórios em Portugal, como Torres Vedras, Sintra e Ourém, entre outros. Esta distribuição de riquezas causou grande descontentamento entre os nobres, que viam na rainha uma estrangeira gananciosa. O povo, já sofrendo com a miséria, começou a odiar a rainha, agravando ainda mais a imagem do rei.
Apesar de os casamentos entre parentes serem comuns nas cortes ibéricas, a consanguinidade do casal tornou-se uma arma para os opositores de D. Sancho II. Em 1245, o Papa Inocêncio IV declarou o casamento nulo e ordenou a separação, mas o rei recusou acatar a decisão. Este ato de desobediência papal fortaleceu ainda mais os seus inimigos, liderados pelo seu irmão, o infante D. Afonso.
A destituição do Rei
Em julho de 1245, através da bula “Grandi non immerito”, o Papa Inocêncio IV declarou D. Sancho II como “Rex Inutilis” (“Rei Inútil”), dispensando os portugueses do dever de obediência ao monarca. D. Afonso foi nomeado regente, iniciando um período de guerra civil que devastou o país. Em 1246, as tropas de D. Afonso conquistaram Santarém, Alenquer, Torres Novas, Tomar, Alcobaça e Leiria, enquanto D. Sancho II se fortificava em Coimbra.
Numa tentativa desesperada de manter o trono, D. Sancho II procurou ajuda junto do rei de Castela, Afonso X, refere a VortexMag. Apesar de algumas vitórias em batalhas, a situação tornou-se insustentável. No verão de 1246, a rainha D. Mécia foi raptada por cavaleiros leais a D. Afonso e levada para o castelo de Ourém. Quando D. Sancho tentou resgatá-la, D. Mécia recusou regressar ao seu lado, aliando-se ao partido de D. Afonso. Este episódio foi devastador para a imagem do rei, que foi acusado de impotência por não ter descendência com a rainha.
O exílio e a morte
Pressionado pela Igreja e derrotado politicamente, D. Sancho II foi forçado a abdicar e partiu para o exílio em Toledo, sob a proteção do seu primo, Fernando III de Castela. Faleceu a 4 de janeiro de 1248, usando o capelo de frade que adotara na sua juventude. Foi sepultado em Toledo, tornando-se o único rei de Portugal enterrado fora do território nacional.
A ascensão de D. Afonso III e a lenda de Martim de Freitas
Com a morte de D. Sancho II, D. Afonso III assumiu oficialmente o trono. No entanto, nem todos os nobres aceitaram facilmente a sua governação. Segundo a lenda, o alcaide de Coimbra, Martim de Freitas, recusou entregar as chaves da cidade ao novo rei. Apenas após verificar pessoalmente a morte de D. Sancho II, em Toledo, é que Martim de Freitas abriu os portões da cidade, depositando simbolicamente as chaves nos braços do rei falecido.
D. Afonso III, comovido pela lealdade de Martim, ofereceu-lhe a continuidade no cargo, mas o alcaide recusou, preferindo abandonar a vida política. Este gesto de lealdade permanece como um símbolo da turbulência e do sentido de honra que marcaram este período da história portuguesa.
Assim, o reinado de D. Sancho II termina como um dos mais conturbados da história de Portugal, deixando lições sobre o impacto da instabilidade política e as consequências de alianças mal calculadas. O seu legado permanece um lembrete de como a política, a religião e as relações pessoais podem entrelaçar-se de forma explosiva na liderança de uma nação.