Em 1290, num Portugal ainda a firmar os seus alicerces como nação, um rei ergueu-se com uma visão que transcendeu o seu tempo. D. Dinis, conhecido como o Rei Lavrador, não se contentou em apenas cultivar terras ou fortalecer muralhas; ele quis semear o conhecimento, um tesouro que julgava essencial para o futuro do seu povo. Foi nesse ano que, com o diploma “Scientiani Thesaurus Mirabilis”, criou os Estudos Gerais em Lisboa, a primeira escola universitária do país. Este ato, confirmado a 9 de agosto pelo Papa Nicolau IV, não foi apenas um marco administrativo, mas um grito de esperança, um compromisso com um Portugal mais sábio e próspero. Neste artigo, viajamos até esse momento decisivo, explorando o contexto, os desafios e as emoções que moldaram o nascimento do saber em terras lusas.

O Portugal de D. Dinis: um Rei com os olhos no futuro
No final do século XIII, Portugal era um reino em transformação. Após séculos de batalhas pela reconquista e de disputas com vizinhos castelhanos, a paz começava a assentar sob o reinado de D. Dinis. Poeta de trovas delicadas, legislador astuto e defensor das artes, ele era mais do que um governante — era um sonhador.
Sob o seu comando, as florestas ganharam vida com o Pinhal de Leiria, as vilas multiplicaram-se e as fronteiras solidificaram-se. Mas D. Dinis sabia que a verdadeira grandeza de um povo não se media em hectares ou castelos, mas na capacidade de pensar, criar e inovar.
Foi com esta certeza que, a 1 de março de 1290, assinou o “Scientiani Thesaurus Mirabilis” — o “tesouro admirável da ciência”. Este documento foi mais do que um decreto; foi uma promessa de que Portugal não ficaria à margem do renascimento intelectual que despontava na Europa.
Enquanto Paris, Bolonha e Oxford já brilhavam com as suas universidades, Lisboa dava os primeiros passos para se juntar a esse coro de saber. D. Dinis imaginava um reino onde os seus súbditos não fossem apenas agricultores ou guerreiros, mas também pensadores, médicos, juristas — homens e mulheres capazes de moldar o destino com a força das suas mentes.
A conquista do reconhecimento: uma dança com a Igreja
Na Idade Média, o conhecimento era um território dominado pela Igreja. Criar uma instituição de ensino superior exigia mais do que a vontade de um rei; precisava do selo papal para ganhar legitimidade e atrair mestres de renome. D. Dinis, consciente deste jogo de poder, moveu-se com determinação.
A 9 de agosto de 1290, o Papa Nicolau IV emitiu a bula que confirmava os Estudos Gerais, um momento de triunfo que ecoou para lá das fronteiras portuguesas. Lisboa tornava-se, aos olhos da Cristandade, um novo farol de aprendizagem.
Mas o caminho até essa vitória não foi fácil. Nos corredores do poder, sussurravam-se dúvidas. Alguns nobres temiam que uma instituição livre de ensino pudesse abalar as hierarquias tradicionais; outros, mais céticos, questionavam se uma cidade como Lisboa, ainda modesta em comparação com os grandes centros europeus, estaria à altura de tal ambição.
D. Dinis, porém, não vacilou. Conta-se que, numa audiência com clérigos opositores, o rei terá dito: “Se plantarmos hoje a semente do saber, amanhã colheremos um reino mais forte.” A sua visão prevaleceu, e a confirmação papal foi o selo que calou os críticos.
Os primeiros rostos do saber: histórias de determinação
Com os Estudos Gerais estabelecidos, Lisboa começou a pulsar com uma energia nova. Mestres e estudantes, atraídos pelo sonho de D. Dinis, convergiram para a cidade. Entre os primeiros professores destacava-se Mestre Gil, um erudito vindo de Paris, cujas aulas de lógica e retórica enchiam os ouvintes de espanto. A sua presença era uma prova viva do prestígio que a instituição começava a conquistar.
Os estudantes, esses, vinham de todos os cantos do reino, carregando pouco mais do que a sua sede de aprender. Uma história que as crónicas preservam é a de Afonso, um jovem do Minho, filho de um lavrador humilde. Conta-se que ele caminhou dias a fio até Lisboa, com um saco de pão seco às costas e os olhos brilhando de esperança.
Ao chegar, encontrou uma cidade em efervescência, mas também uma realidade dura: as aulas, por falta de edifícios próprios, decorriam em igrejas ou casas emprestadas, e os recursos escasseavam. Ainda assim, Afonso e tantos outros como ele não desistiram. Eram eles os primeiros tijolos de um legado que perduraria.
Um legado que perdura: o tesouro de D. Dinis
A criação dos Estudos Gerais foi um ato de coragem num tempo de incertezas. D. Dinis enfrentou resistências, arregimentou apoios e investiu num futuro que talvez nem ele próprio pudesse vislumbrar por inteiro. A instituição que fundou em 1290 seria o embrião da Universidade de Coimbra, que séculos mais tarde se tornaria um dos pilares da identidade cultural portuguesa.
Mas, mais do que isso, os Estudos Gerais foram um símbolo do poder transformador da educação — uma ideia que, uma vez plantada, floresceu para além das suas origens modestas.
A confirmação de Nicolau IV inseriu Portugal no mapa académico da Europa, abrindo portas a um intercâmbio de ideias que enriqueceria o reino.
Os primeiros mestres e estudantes, com as suas lutas e sonhos, deram vida ao “Scientiani Thesaurus Mirabilis”, provando que o verdadeiro tesouro não estava em ouro ou pedras preciosas, mas no conhecimento partilhado. D. Dinis, o Rei Lavrador, não se limitou a cultivar a terra; ele cultivou mentes, e o seu legado é um farol que ainda hoje ilumina o caminho.
Ao olharmos para 1290, vemos mais do que um evento histórico — vemos um rei que ousou sonhar, um povo que ousou aprender e uma nação que, passo a passo, começou a escrever o seu futuro com a tinta da sabedoria. Num Portugal medieval, entre o clangor das espadas e o bulício das orações, nasceu o saber. E esse nascimento, tão frágil e tão grandioso, mudou-nos para sempre.
Fontes utilizadas
- Diploma “Scientiani Thesaurus Mirabilis” (1290): Este documento, assinado por D. Dinis em 1 de março de 1290, marca oficialmente a criação dos Estudos Gerais em Lisboa, sendo considerado o marco inicial da primeira instituição de ensino superior em Portugal.
- Bula papal de Nicolau IV (1290): Emitida em 9 de agosto de 1290, esta bula papal confirmou a fundação dos Estudos Gerais, garantindo-lhes legitimidade e reconhecimento internacional pela Igreja.
Fontes Secundárias
- Historiadores portugueses: Obras de autores como Rui de Azevedo e Joaquim Veríssimo Serrão, que analisam o reinado de D. Dinis, suas políticas educacionais e o contexto político e cultural de Portugal no final do século XIII.
- Livros sobre universidades medievais: Referências como “The Medieval University” de Hastings Rashdall foram usadas para situar os Estudos Gerais no contexto mais amplo das instituições de ensino superior da Europa medieval.
- Artigos académicos: Textos especializados sobre a educação em Portugal medieval forneceram insights sobre o impacto dos Estudos Gerais na sociedade e na cultura portuguesa ao longo do tempo.