Durante anos, Portugal foi visto como o destino ideal para quem procurava segurança, qualidade de vida e um recomeço na Europa. Mas essa imagem começa a desvanecer-se. A promessa de um “sonho europeu” transformou-se, para muitos brasileiros, numa realidade dura e insustentável — marcada por rendas exorbitantes, salários estagnados e um custo de vida cada vez mais elevado.
Lara Sheffer, tradutora de 30 anos, é um dos rostos dessa nova vaga de regressos. Em 2023, mudou-se para Portugal com o namorado, entusiasmada com a perspetiva de uma vida mais estável. Dois anos depois, regressou ao Brasil. O motivo? “Temos mais qualidade de vida em Florianópolis do que em Portugal”, confessou à BBC.
O casal, que arrendara um T1 em Oeiras por 935 euros mensais, viu a renda aumentar para 1.250 euros — um acréscimo de 315 euros em apenas dois anos. E o aumento não ficou por aí: as despesas mensais subiram cerca de 400 euros, um valor incomportável face ao rendimento disponível.
Portugal mais caro do que nunca
Os números confirmam o que muitos sentem na pele. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), a inflação atingiu 2,8% em agosto, impulsionada sobretudo pelo aumento dos preços dos alimentos. Já o portal Idealista indica que, em agosto de 2025, o valor médio de arrendamento atingiu os 16,8 euros por metro quadrado — mais 3,3% do que no mesmo período do ano anterior.
Os dados do Eurostat revelam ainda um retrato preocupante: Portugal é o país da União Europeia onde o preço das casas mais subiu nas últimas décadas. Em 15 anos, o valor da habitação duplicou, enquanto o Salário Mínimo Nacional apenas passou de 475 para 870 euros.
O peso do turismo e dos nómadas digitais
Especialistas ouvidos pela BBC apontam múltiplas causas para esta escalada. A “turistificação” das grandes cidades, o aumento da procura por parte de estrangeiros com poder de compra mais elevado e a criação de vistos para nómadas digitais estão entre os principais fatores.
“Criou-se um duplo estrangulamento”, explica João Lopes Nyegray, professor de Geopolítica da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. “Por um lado, há uma procura crescente por habitação; por outro, a construção de novos imóveis é travada pelo aumento dos custos de financiamento e materiais.”
O resultado é uma pressão insustentável sobre o mercado habitacional, que deixa para trás quem ganha menos.
Os brasileiros entre o sonho e o regresso
Os imigrantes brasileiros, muitos dos quais trabalham nos setores do comércio, serviços e construção civil, são dos mais afetados. Em Lisboa e no Porto, as rendas chegam a consumir entre 40% e 60% do rendimento familiar. Lucas Carrera, bibliotecário de 37 anos, decidiu deixar Lisboa após sete anos. Mudou-se para Barcelona, onde duplicou o salário e paga apenas 630 euros por um apartamento no centro da cidade — algo impensável na capital portuguesa. “Em Portugal, o salário não acompanhou o custo de vida”, lamenta.
O mesmo aconteceu com Glauco Brandão, de 42 anos, que trocou Lisboa por Gent, na Bélgica. Lá, ganha o dobro e paga rendas mais baixas. “Vivo com mais conforto e dignidade. Portugal já não oferece isso.”
O fenómeno da “turbo-gentrificação”
O geógrafo Luís Filipe Gonçalves Mendes, da Universidade de Lisboa, designa o processo em curso como “turbo-gentrificação”. Nos últimos 15 anos, os preços da habitação subiram até 300%, e cerca de 20% da população abandonou os centros históricos entre 2011 e 2021.
Para Mendes, a expulsão silenciosa de comunidades imigrantes e de classes médias empobrece o tecido social e cultural das cidades: “Uma cidade sem imigrantes já não é uma cidade. Torna-se etnicamente limpa, sem diversidade, sem alma.”
Quando viver em Portugal se torna um luxo
Segundo o ZAP, a situação é agravada pela estagnação salarial. O salário mínimo nacional de 870 euros é insuficiente para enfrentar rendas que, em algumas zonas de Lisboa, ultrapassam facilmente os 1.500 euros mensais. O alojamento local e a entrada de grandes fundos imobiliários, que tratam a habitação como um ativo financeiro, contribuíram para um mercado cada vez mais inacessível para a classe trabalhadora.
O que outrora era um destino de esperança tornou-se, para muitos, um território de frustração.
Mais brasileiros a regressar, mas os portugueses sofrem ainda mais
Segundo o Relatório de Migrações e Asilo de 2023 da AIMA, 52,4% das notificações de abandono voluntário apresentadas naquele ano pertenciam a cidadãos brasileiros — cerca de 345 pessoas. Pode parecer um número reduzido, mas simboliza uma mudança de ciclo: o fim da era do “sonho português”.
Ainda assim, em proporção, são os próprios portugueses que mais abandonam o país. De acordo com dados do Observatório da Emigração, em 2023, cerca de 70 mil cidadãos emigraram — dez vezes mais, em termos relativos, do que os brasileiros que decidiram regressar ao seu país.
Um país em encruzilhada
Portugal continua a ser um país de encanto, com sol, segurança e hospitalidade. Mas para muitos — nacionais e estrangeiros — a beleza deixou de compensar o custo. O que se prometia como um lar de oportunidades tornou-se um território onde a sobrevivência diária exige sacrifícios que poucos estão dispostos a manter.
O “sonho europeu” em Portugal não desapareceu. Apenas se transformou — para alguns, num sonho adiado; para outros, num bilhete de regresso.
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