Na tarde de 11 de setembro de 1985, um cenário digno de um pesadelo marcou para sempre a ferrovia portuguesa. Perto de Alcafache, entre Nelas e Mangualde, dois comboios colidiram frontalmente: um Internacional com destino a França e um Regional que seguia da Guarda para Coimbra. O resultado foi um incêndio avassalador, descrito na época como “um forno humano num inferno de ferro”. A tragédia deixou oficialmente 49 mortos e 64 desaparecidos, mas as memórias dos sobreviventes e dos bombeiros que lá chegaram falam de muito mais.
Quarenta anos depois, permanece a ferida na memória coletiva — e uma inquietante verdade: o sistema de segurança que falhou em Alcafache, o cantonamento telefónico, continua ativo em quatro linhas da rede ferroviária nacional.
Um acidente que Portugal nunca esqueceu
O comboio Internacional saiu do Porto com atraso, recuperou minutos pelo caminho e deveria cruzar-se com o Regional em Nelas. Mas uma falha de comunicação entre o posto central em Coimbra e os chefes de estação fez com que ambos seguissem na mesma linha, de via única, em rota de colisão.
O impacto foi brutal. As carruagens incendiaram-se, atingindo temperaturas próximas dos 600 graus. Muitos passageiros morreram carbonizados ao tentar resgatar as bagagens. O silêncio após o choque deu lugar a gritos desesperados e a um cenário descrito por testemunhas como “perfeitamente aterrador”.
Alguns sobreviveram por mero acaso, como José Teixeira, que viajava de costas para o sentido da marcha e escapou ileso. Outros, como o médico Américo Borges, que chegou ao local para prestar socorro, nunca esqueceram a visão de corpos carbonizados e famílias destruídas.
A vulnerabilidade do sistema
Na origem da tragédia esteve o cantonamento telefónico, um sistema rudimentar que assenta quase exclusivamente na comunicação humana entre estações. O princípio é simples: antes de autorizar a passagem de um comboio, o chefe de estação deve garantir, via telefone, que a linha está livre. Em Alcafache, essa comunicação falhou.
Este regime já deveria pertencer ao passado, mas continua a ser utilizado em cerca de 412 quilómetros da rede ferroviária portuguesa, designadamente em troços das linhas do Oeste, Alentejo, Leste e Douro.
Especialistas são claros: este sistema é mais vulnerável a erros humanos e potencia atrasos. Não tem redundância eletrónica, não dispõe de Convel (controlo automático de velocidade), não existe comunicação direta solo-comboio e os Centros de Comando Operacional não conseguem intervir em tempo real. Em caso de falha, o risco aumenta exponencialmente.
“Não é intolerável”, mas é um risco real
Segundo a Renascença, Carlos Oliveira Cruz, professor do Instituto Superior Técnico, reconhece que o cantonamento telefónico implica um nível de risco superior, embora não considere “intolerável” face ao reduzido número de comboios que circulam nesses troços. Entre Abrantes e Elvas passam apenas quatro composições por dia; entre Casa Branca e Beja, 15; e no Douro, entre Marco de Canaveses e Pocinho, cerca de 28.
Ainda assim, o facto de em pleno século XXI Portugal manter linhas dependentes de chamadas telefónicas entre estações é, para muitos, incompreensível. Como salienta João Cunha, administrador do portal Portugal Ferroviário, “não precisava de ser assim”. Sistemas automáticos de segurança existem e poderiam ter sido implementados de forma faseada, mesmo em linhas de menor procura.
A vida dos maquinistas: confiança e ansiedade
Nas linhas com cantonamento telefónico, os maquinistas circulam “na base da confiança”, explica António Domingues, presidente do Sindicato dos Maquinistas. Sem sistemas de apoio embarcados, sem comunicações estruturadas e muitas vezes sem sinalização adequada, resta-lhes seguir os regulamentos com rigor e confiar que os chefes de estação cumpriram todos os protocolos.
Domingues alerta também para o impacto deste regime na qualidade do serviço: cruzamentos obrigatórios, estações sem modernização e operadores que percorrem quilómetros de bicicleta para manobrar agulhas tornam os atrasos inevitáveis. Em linguagem ferroviária, “raramente um comboio chega à tabela”.
Promessas de modernização, mas a passo lento
A Infraestruturas de Portugal garante que o Plano Nacional de Investimentos 2030 prevê a substituição do cantonamento telefónico por sinalização eletrónica. No entanto, os prazos arrastam-se. A Linha da Beira Alta, palco da tragédia, está ainda em modernização, após um fecho que deveria ter durado nove meses e que se prolongou por quase três anos.
A União Europeia exige a adoção do ETCS (Sistema Europeu de Controlo Ferroviário), que substituirá gradualmente o Convel português. Quando totalmente instalado e integrado, este sistema tornará impossível a repetição de acidentes como Alcafache. Até lá, persistem as falhas.
A memória que não pode ser esquecida
No local do desastre ergue-se hoje um memorial, construído com esforço de familiares das vítimas e emigrantes. Ali repousam restos mortais não identificados, lembrando que muitas famílias nunca tiveram um funeral digno.
Quarenta anos depois, Alcafache é mais do que uma tragédia ferroviária. É um aviso. Um lembrete de que a segurança ferroviária não pode depender apenas da sorte ou da memória dos que resistiram.
Portugal orgulha-se de modernizar a ferrovia, mas o país não pode aceitar que, em pleno século XXI, sobrevivam sistemas que colocam vidas em risco. Alcafache exige mais do que homenagens: exige investimento, responsabilidade e a garantia de que jamais se repetirá um “filme de terror” na ferrovia nacional.