Portugal, o maior consumidor mundial de bacalhau salgado, enfrenta uma crise silenciosa que ameaça um dos pilares da sua identidade gastronómica. Com mais de 170 mil toneladas de bacalhau consumidas por ano, o país encontra-se agora no centro de um dilema económico e cultural. O embargo europeu imposto à Rússia, que impede a importação de produtos daquele país, está a provocar sérias dificuldades às empresas portuguesas de transformação de bacalhau e a elevar os preços a níveis considerados “incomportáveis” para a maioria das famílias.
A Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CPPME) lançou um apelo urgente ao Governo, pedindo que Portugal invoque junto de Bruxelas um regime de exceção que permita a importação de bacalhau russo.
A organização, após uma reunião com o secretário de Estado das Pescas e do Mar, Salvador Malheiro, argumenta que o embargo europeu está a distorcer o mercado e a colocar as empresas nacionais em clara desvantagem face às companhias norueguesas — que acabam por dominar a oferta e fixar preços elevados, aproveitando a escassez de concorrência.
O embargo europeu e o impacto nas empresas portuguesas
Desde janeiro de 2024, a União Europeia impôs uma tarifa de 12% sobre a importação de bacalhau congelado proveniente da Rússia, matéria-prima essencial para a indústria bacalhoeira portuguesa.
Em maio, a situação agravou-se com a proibição total de importação e comercialização de produtos das duas maiores companhias pesqueiras russas. Esta decisão, motivada pelas sanções ao regime de Moscovo devido à guerra na Ucrânia, teve efeitos devastadores sobre o setor nacional, com empresas a reportarem dificuldades crescentes em manter a produção e a assegurar preços acessíveis para o consumidor.
A CPPME denuncia que “a maioria das empresas de transformação do fiel amigo está a ser esmagadoramente penalizada”, sublinhando que o bacalhau não é apenas um produto comercial, mas um símbolo da cultura e tradição portuguesa. Do Natal à Páscoa, o bacalhau ocupa um lugar de destaque nas mesas nacionais e é visto como parte do património afetivo do país.
Governo promete analisar o pedido de exceção
Durante a reunião com os representantes da confederação, o secretário de Estado das Pescas e do Mar terá garantido que o Governo está sensível ao problema e que o tema será levado a Conselho de Ministros.
Salvador Malheiro reconheceu que o bacalhau faz parte da identidade nacional e que é necessário encontrar uma solução equilibrada entre as exigências europeias e a defesa dos interesses económicos e culturais de Portugal.
Um legado histórico ameaçado
O bacalhau está enraizado na história portuguesa desde a época dos Descobrimentos, quando as frotas nacionais aventuravam-se nos mares gelados da Terra Nova e da Gronelândia. Séculos depois, o país que outrora pescava o “fiel amigo” com as suas próprias embarcações tornou-se dependente de importações, sobretudo das águas frias da Noruega e do Canadá — regiões onde este peixe prolifera devido ao encontro das correntes polares com as águas quentes do Golfo.
Hoje, porém, o cenário mudou radicalmente. Para além do embargo russo, as quotas de pesca impostas pela União Europeia e o aumento dos custos de transporte e de operação tornam a cadeia de abastecimento cada vez mais cara.
Ainda que a quota portuguesa tenha duplicado este ano — para 1171 toneladas nas águas nórdicas e 495 no Canadá —, as quantidades continuam insuficientes para satisfazer o mercado interno.
Preços do bacalhau podem atingir valores históricos
De acordo com a TSF, o setor teme agora um novo pico de preços à beira do Natal, período que representa cerca de 30% das vendas anuais de bacalhau em Portugal. A Associação dos Industriais do Bacalhau já tinha alertado, no final de 2024, que o preço do peixe seco poderia atingir os 40 euros por quilo em 2025, caso não houvesse alterações nas políticas europeias.
A dois meses da consoada, o risco volta a pairar sobre os consumidores, num mercado cada vez mais vulnerável às sanções, à escassez de oferta e às manobras do mercado paralelo — onde o bacalhau russo continua a entrar na Europa sem cumprir as mesmas regras e tarifas aduaneiras.
Uma questão que vai além da economia
A crise do bacalhau é, no fundo, mais do que um problema de mercado: é uma questão de identidade e soberania alimentar. Num país onde “o bacalhau nunca falta à mesa”, as sanções e as restrições impostas por Bruxelas estão a pôr em causa um símbolo de união familiar e de tradição secular.
As próximas decisões do Governo e da União Europeia poderão determinar se o “fiel amigo” continuará a ser presença constante no prato dos portugueses — ou se passará, para muitos, a ser um luxo reservado a poucos.
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