Na margem oriental de Lisboa, em Marvila, junto ao Poço do Bispo, ergue-se um espaço carregado de memórias e de estigmas: a Mitra. Durante décadas, este nome ecoou como insulto, usado com a mesma intenção de quem chamava “pobre”, “penetra”, “marginal” ou “guna”. No entanto, antes de ser sinónimo de exclusão, a Mitra foi um local físico — e dolorosamente real — onde milhares de mendigos, prostitutas, pessoas com deficiência e doentes mentais eram depositados pelo Estado Novo.

O que hoje é recordado como um património reabilitado, já foi palco de exclusão, sofrimento e abandono.
Da quinta senhorial ao palácio barroco
A origem da Mitra remonta a 1566, quando a Quinta da Mitra foi aforada perpetuamente ao Morgado do Esporão. No século XVII, parte da propriedade regressou à Mitra, transformando-se numa quinta de recreio.
No século XVIII, o Cardeal Patriarca de Lisboa recuperou o palácio devoluto e transformou-o num sumptuoso edifício barroco com cais privativo, símbolo do poder eclesiástico. A zona, situada entre a Madre de Deus e o Poço do Bispo, era marcada por palácios e conventos, respirando influência e riqueza.
Com o passar dos séculos, sucessivas vendas foram alterando a posse da propriedade. Em 1864, o espaço foi adquirido pelo Marquês de Salamanca; dez anos depois, pelo diplomata norte-americano Horatius Justus Perry, casado com a poetisa Carolina Coronado. Já em 1902, passou para António Centeno, permanecendo na família até 1911.

O nascimento do Asilo da Mitra
A viragem deu-se no século XX, quando a antiga propriedade mudou de vocação. Depois de ter sido usada pela Fábrica Seixas, de fundição e metalurgia, a Câmara Municipal de Lisboa adquiriu o espaço em 1930. O plano inicial era instalar ali um matadouro, mas acabou por ser criado algo diferente — e sombrio.
A 4 de maio de 1933, foi inaugurado o Asilo da Mitra, idealizado pelo coronel Lopes Mateus. À época, a instituição foi considerada “modelar”, pois acolhia cerca de 1.300 pessoas, de ambos os sexos, que eram retiradas da via pública pela PSP. O objetivo oficial era “limpar moralmente” Lisboa, criminalizando a mendicidade e afastando da vista pública os que não se encaixavam no ideal de sociedade do Estado Novo.
Na prática, o espaço tornou-se um depósito humano. Pessoas sem qualquer crime eram encerradas contra a sua vontade, muitas vezes sem esperança de sair. Adultos podiam, em teoria, libertar-se mediante pagamento de uma multa ou por fuga. Mas as crianças, os idosos abandonados, os doentes crónicos e os doentes mentais ficavam presos, esquecidos, sem tratamento digno.
O jornal O Século, em 1932, citado pelo Expresso, escrevia indignado: “Urge pôr termo a semelhante abominação”, denunciando a abundância de crianças a vaguear pelas ruas e a forma como eram recolhidas à força, não para serem cuidadas, mas para desaparecerem do olhar da sociedade.

A Mitra como depósito de doentes psiquiátricos
Nos anos 1950, o perfil do Asilo da Mitra alterou-se: passou a receber sobretudo doentes psiquiátricos considerados “incuráveis”. Entre 1952 e 1974, o espaço funcionou como unidade de retaguarda para os hospitais psiquiátricos Júlio de Matos e Miguel Bombarda. Só os casos que ainda eram considerados “tratáveis” eram encaminhados para os hospitais. Os restantes ficavam esquecidos, muitas vezes até à morte, na Mitra. Um espaço que, sob a capa da ordem pública, mais não foi do que um símbolo de exclusão social institucionalizada.
Do estigma à reabilitação social
Após a Revolução de Abril, em 31 de maio de 1977, o Albergue Distrital de Mendicidade foi extinto e colocado sob tutela da Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais. Um ano depois, o espaço passou a chamar-se Centro de Apoio Social de Lisboa, acolhendo idosos e funcionando como centro de triagem para instituições especializadas.
Já no século XXI, a Mitra conheceu um novo capítulo. Em 2014, a Câmara Municipal de Lisboa cedeu o espaço à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que iniciou um ambicioso projeto de reabilitação e restauro. O objetivo era claro: romper com o estigma da mendicidade e devolver dignidade a um espaço marcado por dor e exclusão.
Hoje, a “Lisboa Social Mitra” integra dois edifícios de enorme valor patrimonial: o palácio barroco do primeiro Patriarca de Lisboa, atualmente usado como salão nobre da autarquia, e o antigo asilo, reabilitado e devolvido à cidade.
A memória da Mitra
Apesar da recuperação arquitetónica e funcional, refere o ZAP, o nome Mitra carrega ainda o peso de séculos de marginalização. Representa a história invisível dos que foram escondidos da sociedade, considerados indesejáveis ou descartáveis.
Recontar a história da Mitra é recordar não apenas o esplendor de um palácio barroco, mas também a escuridão de um regime que tentou apagar a vulnerabilidade humana do espaço público. É, acima de tudo, um alerta para que a memória não se perca — e para que nunca se repitam as práticas que transformaram pessoas em sombras.