Portugal, século XV. O reino respirava sob o peso de uma dualidade: a ambição de um monarca visionário e o orgulho ferido de uma nobreza que se via ameaçada. D. João II, cognominado “O Príncipe Perfeito”, ascendera ao trono em 1481, determinado a consolidar o poder real contra os interesses fragmentados dos grandes senhores feudais. Entre estes, destacava-se a Casa de Bragança, a mais poderosa linhagem do reino, cujas terras se estendiam como um império paralelo. Era um jogo de xadrez político, onde cada movimento podia significar a vida ou a morte. E em 1483, um golpe traiçoeiro abalaria para sempre a corte portuguesa.
A sombra da desconfiança
D. João II não era um homem de meias medidas. Herdeiro de uma coroa que ainda sangrava pelas feridas da crise de 1383-1385, sabia que a centralização do poder era essencial para evitar que Portugal se despedaçasse em feudos rivais. Mas os Braganças, liderados por D. Fernando II, 3.º Duque de Bragança, viam nas reformas do rei uma afronta direta. A família detinha não apenas vastas propriedades, mas influência na corte, nas finanças e até nas ligações com Castela.
O duque, homem de traços austeros e ambição desmedida, via-se como igual ao rei. A sua biblioteca em Vila Viçosa era lendária, repleta de tratados de guerra e filosofia, mas faltava-lhe a astúcia política de D. João II. Enquanto o monarca agia com cautela, semeando alianças e infiltrando espiões, o duque movia-se com a arrogância de quem julgava intocável.

O murmúrio das conspirações
No outono de 1483, os corredores do Paço de Évora ecoavam segredos. D. Fernando II reunira-se em segredo com nobres descontentes, incluindo o seu cunhado, o Marquês de Montemor, e D. Diogo, Duque de Viseu (primo do rei). O plano era audacioso: assassinar D. João II e colocar no trono um monarca mais “flexível”, possivelmente o próprio D. Diogo.
Mas a teia da conspiração tinha fios frágeis. D. João II, informado por uma rede de confidentes — entre eles o misterioso “Alcoforado”, um escudeiro infiltrado —, soube dos intentos antes mesmo que os conspiradores desembainhassem as espadas. O rei, mestre na arte da dissimulação, deixou que a trama avançasse, coletando provas como um caçador paciente.
A noite que mudou tudo: a queda do duque
Foi em Montemor-o-Novo, sob um céu carregado de presságios, que o destino se desenhou. D. Fernando II fora convocado pelo rei para uma reunião de aparente reconciliação. Ao entrar na sala, encontrou não o monarca, mas uma armadilha. Guardas reais cercaram-no, enquanto um documento com selos queimados — as cartas trocadas com Isabel de Castela, pedindo apoio militar — era brandido como prova de traição.
O duque, imóvel, compreendeu a profundidade da queda. Acusado de lesa-majestade, foi levado para Évora sob escolta. O julgamento foi rápido e simbólico: num gesto que ecoou a frieza de César perante Brutus, D. João II assinou a sentença de morte. Em 20 de junho de 1483, D. Fernando II foi decapitado na praça pública, diante de uma multidão em silêncio. A cabeça do homem que desafiara a coroa rolou no mesmo solo que seus antepassados haviam governado.
O sangue que manchou a corte
A execução do duque foi apenas o início. D. João II, determinado a erradicar qualquer semente de rebelião, ordenou a confiscação de todos os bens dos Braganças. A família foi exilada, e o pequeno herdeiro, D. Jaime, então com 4 anos, cresceria longe do luxo de Vila Viçosa, sob a sombra da desgraça.
Mas o rei não parou aí. O Duque de Viseu, D. Diogo, primo e antigo aliado, foi apunhalado pelo próprio monarca durante um encontro privado no Paço da Ribeira. Diz a lenda que D. João II, após o crime, teria murmurado: “Assim se trai um traidor”. A violência chocou até os mais cínicos, marcando o início de um reinado tão brilhante quanto impiedoso.

O legado de uma traição: lágrimas e poder
A Conspiração dos Braganças não foi apenas um episódio isolado de traição. Foi um ponto de viragem na história portuguesa, simbolizando o triunfo do Estado centralizado sobre o feudalismo. D. João II, ao eliminar os rivais, pavimentou o caminho para a era dos Descobrimentos, onde Portugal se tornaria uma potência global.
Mas há uma ironia trágica nisto: anos depois, seria justamente um Bragança, D. João IV, a restaurar a independência de Portugal em 1640, após décadas de domínio filipino. A história, como um rio caprichoso, redimiu aqueles que um dia foram condenados.
A última carta de D. Fernando II
Entre os documentos da época, sobrevive uma carta escrita pelo duque na véspera da execução, dirigida à esposa, D. Isabel de Lencastre. Nas linhas trémulas, ele descreve o desespero de deixar os filhos órfãos e pede perdão por “ter amado demasiado a honra e demasiado pouco a vida”. A missiva, guardada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, é um testemunho silencioso da fragilidade humana perante a roda da fortuna.
O eco de uma traição
A Conspiração de 1483 não foi apenas um conflito de homens, mas de ideais. D. João II, visionário e tirano, moldou Portugal com mão de ferro, enquanto os Braganças pagaram o preço de desafiar o destino. Nas suas tragédias, vemos reflexos de temas universais: ambição, lealdade e o custo amargo do poder.
Hoje, ao percorrer as ruas de Évora ou os salões de Vila Viçosa, é possível ouvir o sussurro da história — um lembrete de que, por detrás dos muros de pedra, dormem segredos que o tempo jamais apagou.
Nota final
Este episódio, embora menos conhecido que os feitos marítimos, revela as raízes sombrias de onde brotou o Portugal dourado dos navegadores. Afinal, antes de haver caravelas, houve sangue na corte.