Descubra a história conturbada da capela do rei Carlos Alberto que, afinal, foi feita ao gosto do mestre pedreiro.
Todos gostamos de conhecer histórias de amor, algumas mais trágicas do que outras. Parecem contos de fadas que ganharam forma e vida e que, quando distantes, parecem até ser um pouco irreais e quase pertencerem ao domínio da imaginação.
A história que hoje vos trazemos não é das mais conhecidas, embora tenha contornos bem interessantes. Ela fala sobre a relação fraterna entre o rei de Itália Carlos Alberto e a sua irmã, Augusta de Montleart, que nem a morte conseguiu destruir. Fique a saber mais.
A capela do rei Carlos Alberto nos Jardins do Palácio de Cristal
Em 1848, o rei Carlos Alberto foi derrotado pelos militares austríacos, abdicando do trono a favor do seu filho e exilando-se em Portugal, mais concretamente no Porto.
À época terá ido viver para aquele que é, atualmente, o Palacete dos Viscondes de Balsemão, sito precisamente na Praça Carlos Alberto. Porém, depois, acabou por mudar-se para junto do Palácio de Cristal, no local da antiga Quinta da Macieirinha.
A sua saúde débil fez com que morresse cerca de 1 ano depois de ter chegado à Invicta, mais concretamente a 28 de julho de 1849.
Anos depois, a sua irmã, Augusta de Montleart, veio visitar o Porto, onde mandou construir uma capela em honra do seu irmão, na atual Avenida das Tílias, nos jardins do Palácio, a Capela Carlos Alberto.
As polémicas em torno da Capela Carlos Alberto
A construção da capela não foi propriamente pacífica, uma vez que os periódicos da época publicaram alguns comunicados que alertavam para a necessidade de garantir que a obra era bem executada, pondo em causa as capacidades do mestre pedreiro contratado.
O Comércio do Porto foi um dos jornais a divulgar esses textos (alguns anónimos), nomeadamente este datado de 11 de setembro de 1854:
«A importância da cidade do Porto é toda comercial e a cidade mesmo em si, não encerra monumentos grandiosos, fontes elegantes ou estátuas que imprimem um cunho de grandeza a um centro de população e fazem admirar a estrangeiros.
Está-se construindo agora no Largo da Torre da Marca, uma capela em memória do herói italiano, o rei Carlos Alberto, mandada fazer pela princesa, sua parente, que há pouco aqui esteve. Consta-nos que quando ela tratou de mandar construir a capela, chamara vários arquitetos para lhe darem planos mas parece que afinal dera um esboço da obra, ao mestre pedreiro, encarregado da fiscalização dela, o arquiteto sr. Pedro d’Oliveira.
Custa-nos a crer que se deixe um mestre pedreiro presidir aquela edificação, sem plano algum regular e conveniente; por isso lá vemos nas traseiras da capela que nos dizem gótica, duas janelas de feitio das de qualquer casebre moderno! As paredes laterais em lugar de pedra lavrada vão ser rebocadas exteriormente com cal, o que denota pobreza e mau gosto.»
E o autor anónimo prossegue:
«Pedimos por tanto à Ex. Câmara, como zeladora do aformoseamento da cidade, que dê a este negócio a devida atenção, se não quiser ver no largo da Torre de Marca um edifício sem beleza regular, nem harmonia, em fim um outro drop, mas de pedra.
Não somos mestre pedreiro, e pouco nos importa que quem justou a obra, ganhe muito ou pouco, falamos porque hoje em dia é preciso falar e porque estamos cansados de ver obras tristes e azangadas.»
Mas a polémica continuou…
Com efeito, se hoje a capela está enquadrada por vegetação, na altura a zona tratava-se de um descampado, pelo que, na existência de defeitos de construção, esses seriam mais visíveis.
Para adensar a polémica em torno desta obra é, desta feita, o próprio arquiteto que havia ficado responsável pelo desenho da capela que fala a “O Comércio do Porto” sobre os avanços e recuos daquela empreitada e como tinha sido entregue ao mestre pedreiro parte da responsabilidade por aquela obra.
Assim, num longo comunicado, o arquiteto Pedro d’Oliveira explicou tudo o que se passara, desde que foi chamado para uma reunião com a Princesa Augusta de Montleart:
«Srs. Redatores,
Um comunicado que VV. transcreveram no seu periódico de 14 do corrente, relativo à capela que se está construindo no largo da Torre da Marca, em memória do rei Carlos Alberto e no qual figura o meu nome, me obriga a dar algumas explicações, a fim de repelir de mim toda a responsabilidade pela sua arquitetura o gosto adotado para as quatro faces da capela tanto exterior como interiormente. Principiarei narrando o que comigo se passou a tal respeito.
Logo que chegou a esta cidade a princesa, parente do rei Carlos Alberto, fui convidado para comparecer em casa de sua alteza a fim de ser ouvido e consultado relativamente à construção de uma capela, que em memória ao mesmo rei ela pretendia mandar fazer, e sendo apresentado pela mesma pessoa que em nome de S.A. me tinha convidado, tive a honra e satisfação de falar com a princesa e de ouvi-la a tal respeito.
Nesta ocasião mostrou-me S.A. um risco, que tinha sido feito em Lisboa, porém não o achando a seu gosto convidou-me a que eu fizesse um novo risco, dando-me para isso todas as instruções que julgou precisas, e todas aquelas que lhe exigi.»
E o arquiteto Pedro d’Oliveira prossegue:
«Passados alguns dias e quando me achava tratando dos riscos da capela, recebi de sua alteza uma pasta com uns riscos feitos a lápis por S.A. acompanhados de uma carta da pessoa que me havia apresentado, na qual se me pedia o orçamento da despesa da Capela, cujas dimensões eram as mesmas da que se está construindo, segundo os riscos que se me enviaram.
Posto que os mesmos nada mais fossem do que uma ideia geral da frente da capela – planta baixa, secção transversal e longitudinal, ou por outra uns esboços, nem por isso deixei de satisfazer ao que se pedia, remediando as omissões, ou falta dos ditos riscos, segundo melhor me pareceu e julguei conveniente, tendo em vista que os lados exteriores da capela, e frente da traseira ou costas da mesma, deviam estar em harmonia com a frente principal indicada no risco, pois que para os outros três lados não havia risco algum.
Neste sentido orcei toda a obra da capela, exceto a da tribuna, que talvez tivesse de ser de mármore, e remeti a sua alteza o orçamento.»
A partir deste momento, o arquiteto tece alguns comentários acerca da capela e do trabalho do mestre pedreiro:
«Se a fachada da capela ainda mostra alguma beleza e harmonia, o mesmo não se pode dizer das suas traseiras, feita toda ela ao sabor do gosto do mestre pedreiro.
Quatro dias depois disto compareci em casa de sua alteza com o projeto da capela riscado por mim na melhor forma, que entendi, e segundo as instruções que de sua alteza tinha recebido, apresentando planta da frente principal, planta das costas da capela, e lado, planta baixa e secção transversal e longitudinal da mesma.
Nessa ocasião estava também presente o vice-cônsul da Sardenha o illm.º Sr. Paulo Rodrigues Barbosa, o qual viu que a sua alteza não desagradou o meu projeto, e que, somente observou as maiores dimensões que ele tinha em relação ao que ela pretendia, no que respondi, – que tinha riscado a capela como entendi, porém que se alguma coisa não agradava a sua alteza, que se lhe fariam as alterações que quisesse, e que quanto às maiores dimensões era isso fácil de remediar, reduzindo o projeto ao tamanho que se quisesse, no que S.A. concordou.»
Neste comunicado, Pedro d’Oliveira relata também os problemas de comunicação com a Princesa, que ficará de chamar o arquiteto, sem o ter feito:
«Apesar do risco da frente da capela, que eu tinha riscado, não ser um trabalho perfeito e definitivo, contudo juntou-se ao requerimento, em que S.A. pedia licença à câmara municipal para a construção da capela no largo da Torre da Marca, sendo o illm.º Sr. Paulo Rodrigues Barbosa encarregado de o apresentar à câmara para ser aprovado e ver o que a câmara decidia a tal respeito, o que me consta logo fizera pois que neste mesmo dia era o da sessão ordinária da câmara.
Combinou-se por fim que S.A. iria, um dia ao local da Torre da Marca para ver se preferia o terreno público para a edificação da capela, ou o terreno particular que por certa pessoa lhe fora oferecido para o mesmo fim; dizendo sua alteza que eu seria avisado para comparecer, quando fosse designado o dia. Nesta inteligência, e tendo concluído o fim a que fui a casa de S.A, retirei-me, esperando o aviso do dia em que havia de comparecer.»
E, segundo Pedro d’Oliveira, os equívocos continuaram:
«É certo que nunca recebi tal aviso, mas também é certo que alguns dias depois desta última entrevista com sua alteza – foi a câmara municipal com S.A. em vistoria ao local indicado, acompanhada, segundo me consta, de S. exc.ª o Sr. Barão de Valado, governador civil, cônsul francês e outras pessoas, e por essa ocasião designaram para a colocação da capela o terreno em que a mesma se está construindo, também é certo que depois da minha última entrevista com sua alteza, em que se passou o que referi, foi convidado o meu amigo e colega o sr. Joaquim da Costa Lima Júnior, para falar com sua alteza e fazer um plano da capela projetada.
Sei que ele tratou disso e apresentou a sua alteza o que julgou conveniente e acertado, porém quando justamente se tratava de resolver sobre o definitivo plano da obra ou de discutir o plano do sr. Costa Lima foi contratada a obra da capela pelo mestre pedreiro Lopes, que a anda construindo pela quantia que, de certo, e a estas horas o público não ignorará sobre as condições que se apresentaram e assinaram de parte a parte.»
No parágrafo seguinte, o arquiteto explica como esteve para ir fiscalizar a polémica obra:
«Em vista, pois, do que se passou, depois da minha última entrevista com sua alteza, e não se me tendo dito mais coisa alguma a tal respeito, pelo que me constava, fiquei na persuasão, de que a capela, que fora logo principiada, era construída segundo o risco apresentado pelo Sr. Costa Lima, e nesta ideia vivi por bastantes dias, e até às vésperas da saída de sua alteza para a Foz para embarcar no primeiro paquete, quando então certo de que mais não se incomodariam comigo para tal fim, recebi um recado para ir de novo falar com sua alteza, o que apesar de todos os pesares, não deixei de fazer.
Disse-me então sua alteza que pretendia que eu lhe fizesse um orçamento de certas obras da capela, que não tinham entrado no contracto feito com o mestre Lopes; como eram a tribuna, o passeio de pedra que deve circuitar a capela, e outras mais; – ao que me prontifiquei, pedindo me fosse dada uma relação por escrito dessas obras, o que sua alteza fez, satisfazendo eu pela minha parte como me foi pedido.
Depois de largamente conversarmos a respeito da capela, disse-me sua alteza se eu teria dúvida em aceitar a fiscalização da obra da capela pela sua parte, e surpreendendo-me tal proposta, observei a sua alteza que nenhuma dúvida teria, mas que era melhor encarregar disso o sr. Costa Lima, visto ser ele o autor do plano, que se estava seguindo.
S.A respondeu-me que o plano não era o dele, e que se eu não tinha dúvida em aceitar a proposta, no dia em que eu fosse entregar o orçamento que me pedia das obras, me falaria a tal respeito definitivamente.
Justamente no dia em que sua alteza foi para a Foz, esperando ai embarcar no próximo paquete, fui entregar o orçamento pedido, e então me perguntou sua alteza definitivamente se eu estaria concorde em aceitar a fiscalização da obra da capela pela sua parte; respondi que aceitava a proposta, mas que era conveniente que sua alteza por escrito me indicasse quais as obrigações que eu tinha a cumprir e me pusesse ao facto do contrato da obra, para poder conhecer até onde a mesma obra satisfazia ou apresentava vício ou defeito, sendo aquele o documento com o qual eu devia apresentar-me ao mestre pedreira, exigindo dele o cumprimento do que tratara.
S.A. disse que eu me devia entender com o cônsul francês, a quem informaria de tudo, sabendo ele já que eu ficava encarregado de fiscalizar a obra, e que independentemente do papel que eu exigia e que me iria mandar, diria ao mestre pedreiro o mesmo que tinha dito ao sr. cônsul francês. Ora, sem querer saber se S.A. disse ou não a tal respeito alguma coisa aos indivíduos referidos (que me parece e consta que dissera), o que é certo é que esse documento que eu exigi não o recebi. Pelo criado de S.A., que viera a minha casa entregar um livro de sua parte, lhe mandei eu dizer que estava esperando pelo documento que ficara de me mandar.
S.A. embarcou e o papel que eu exigi não apareceu; por tanto entendi que não devia ir fiscalizar a obra da capela sem um documento passado pela devida pessoa que me autorizasse a fiscalização.»
Finalmente, Pedro d’Oliveira acaba por ir ver a obra:
«Nestas circunstâncias foi correndo a obra, até que há pouco mais de um mês recebi um recado para que me dirigisse ao sr. cônsul francês, que tendo recebido instruções de S.A. a respeito da obra, nas mesmas se mencionava o meu nome como encarregado por S.A. da fiscalização, e que ela exigia que, procedendo o sr. cônsul a uma visita à obra na minha companhia, ela fosse informada circunstanciadamente do andamento e estado da obra, na persuasão de que eu, apesar da falta de autorização por escrito para fiscalizar a obra, ainda assim a fiscalizara.
Por esta ocasião expus à pessoa que se dignou dirigir-me o recado o que comigo e S.A. se tinha passado nos últimos dias da sua estada aqui. Apesar de tudo, disse-me essa pessoa, que ainda assim S.A. estava certa, segundo o conteúdo das cartas que tinham vindo, de que eu fiscalizava a obra, e que por isso apesar de não ter ido à mesma obra, fosse falar com o sr. cônsul francês para se combinar no dia da visita.
Assim o fiz, e por esta ocasião expus ao sr. cônsul as razões referidas, que me tinham impedido de fiscalizar a obra por parte de S.A., ao que S. S.ª respondeu que embora assim sucedesse devíamos fazer-lhe uma visita para informar S.A. do estado da obra da capela, na forma de sua exigência, ao que prontamente anuí.
Marcamos o dia da visita para uma sexta-feira às 6 horas da tarde, e nesse dia aí fomos, indo também o illmo. sr. padre Peixoto, convidado pelo sr. cônsul, e o mestre pedreiro. Foi então que vi o verdadeiro estado e andamento da obra e o plano que servia de regulamento para a mesma que é, sem dúvida alguma, feito por S.A. e por ela está assinado, compondo-se só de um risco no gosto gótico, para a frente principal, planta baixa e secção transversal e longitudinal da capela, tudo feito à lápis. É mais um esboço ou ideia geral, do que um rico definitivo para uma obra de tanta circunstância como aquela.»
O arquiteto partilha a avaliação que fez da obra:
«Encontrei a obra em quanto à frente principal feita até à altura de dez palmos com mui pequena diferença, em quanto às faces laterais, em maior altura; quanto à frente das costas da capela, achava-se já feita a pequena porta de entrada e pequenas janelas de luz do pavimento térreo, e montados os peitoris das janelas do pavimento superior, que há-de ficar sobre a sacristia da mesma, e quanto ao interior achavam-se já assentes algumas bases das colunas que tem de formar as naves, e principiada a parede que deve dividir o corpo da capela da sacristia.
Nesta ocasião observei que, não havendo risco que regulasse a forma da frente das costas da capela, fora esta imaginada, ou feita ad libitum e a gosto do mestre pedreiro, assim como as frentes laterais da mesma capela, não havendo tanto entre estas como entre a frente das costas da mesma, nenhuma semelhança ou harmonia com a frente principal, e são mais um contraste do que outra coisa; além da frente das costas da capela ser de um gosto muito ordinário e muito vulgar.
Quanto ao interior é certo também que as proporções das colunas e mais peças da obra, são da mão do mesmo mestre, que neste caso, vista a falta de esclarecimentos, obrou como quis ou entendeu.
Achando-se pois a obra neste estado, e vistas as circunstâncias expostas, entendi que a minha missão se limitava a examinar a segurança, e boa construção da obra, e quanto ao mais, como os riscos não supriam a falta de explicação no contracto nem este as omissões dos riscos, nenhuma observação fiz a tal respeito, naquela ocasião, mas nem por isso deixei de o observar a certa pessoa, que bastante interessa tem tomado neste negócio da capela, a qual à minha observação respondeu:
Que isso agora era mau, que iria levantar uma grande poeira, e que melhor seria entender-me com o mestre pedreiro; eu entendi de outra forma, que foi calar-me, e nada dizer a tal respeito: porque se tal observação fizesse ao mestre pedreiro, ele decerto se oporia a demolir a obra para a fazer de outra forma, e em relação com a frente principal, dando às colunas e bases as devidas proporções, sobretudo quando o risco de uma obra o deixa variar a sua vontade, como agora acontece, e o contrato não supre alguma falta.»
E, assim, o arquiteto Pedro d’Oliveira tentou salvaguardar a sua honra profissional:
«Instigado pelo comunicado que VV. transcreveram no seu periódico, sou obrigado, para crédito meu, a mostrar que nada tenho com o bom ou mau risco da capela que se está construindo; para prova do que, faço a referida exposição singela e franca de tudo que comigo se tem passado, a tal respeito, a pedindo a VV. se serviam mandá-la transcrever no seu periódico.
Setembro, 27 1854
Pedro d’Oliveira »
Muito bom. Gostei de conhecer a história de um lugar onde estive por tantas tardes passeando.