Em 1641, os holandeses conquistaram Malaca, na atual Indonésia, retirando-a do controlo de Portugal. Esta conquista marcou não apenas uma perda territorial significativa para o império português, mas também uma tragédia humanitária para os portugueses e os seus descendentes que habitavam na região. Muitos foram escravizados e levados para Jacarta, então rebatizada como Batavia pelos holandeses, em referência ao nome romano da Holanda. Batavia tornou-se o epicentro das atividades da poderosa Companhia Holandesa das Índias Orientais.
Entre os escravizados encontravam-se portugueses de Malaca e também descendentes de comunidades lusas provenientes da Índia, de Ceilão e de outras regiões asiáticas. Estes homens e mulheres foram obrigados a adaptar-se a uma nova realidade brutal, onde se procurava suprimir qualquer vestígio da sua identidade cultural.
Os holandeses esforçaram-se por apagar as tradições portuguesas, forçando-os a adotar nomes holandeses ou com sonoridade semelhante e a trocar o catolicismo pelo calvinismo. Foram ainda obrigados a residir numa pequena área localizada a cerca de 10 quilómetros do centro de Batavia, chamada Tugu (ou Toegoe, em holandês), hoje conhecida como Kampung Tugu.
De Escravidão à Liberdade: O Surgimento dos Mardijker
A liberdade chegou em 1661, quando estes escravizados foram libertados e passaram a ser conhecidos como Mardijker, uma palavra de origem malaia e sánscrita que significa “libertos”. Curiosamente, esta designação deu origem à palavra indonésia “merdeka”, que significa “liberdade” e se tornou um símbolo da luta por independência no país. Apesar da repressão cultural a que foram sujeitos, os Mardijker conservaram elementos importantes da sua herança portuguesa, que persistem até aos dias de hoje.
Tugu: Um Refúgio de Cultura Portuguesa
Visitar Tugu é como viajar no tempo. Esta aldeia, localizada a nordeste de Jacarta, é um testemunho vivo da resiliência cultural dos seus habitantes. Chegar até lá pode ser desafiante, com o trânsito caótico que caracteriza as proximidades do porto de Tanjung Priok.
Contudo, ao chegar, somos imediatamente envolvidos por uma tranquilidade que contrasta com a agitação da cidade. No centro da aldeia, destaca-se a igreja branca, datada do século XVII, e o cemitério, onde se encontram as memórias de gerações passadas.
A disposição do espaço é reminiscente de aldeias portuguesas, com um largo arborizado onde os idosos se reúnam para partilhar histórias.
Apesar de todos os esforços dos holandeses para erradicar a cultura portuguesa, a comunidade de Tugu conseguiu preservar uma conexão emocional e cultural com Portugal. Hoje, muitos habitantes continuam a sentir um forte carinho por este país distante, que consideram parte da sua identidade.
A Língua e a Música: Testemunhos da Herança Portuguesa
A população de Tugu falava, até ao século XX, um crioulo de base portuguesa conhecido como Papiá Tugu, semelhante ao Papiá Cristão ainda falado em Malaca. Infelizmente, o último falante fluente do Papiá Tugu, Jacob Quiko, faleceu em 1978. Hoje, restam apenas fragmentos dessa língua em poemas e canções tradicionais, como as melodias “Bastiana” e “Moresco”. Estas canções, mesmo que incompreendidas pelas novas gerações, continuam a ser entoadas, preservando uma ligação às suas raízes, explica a VortexMag.
A influência musical de Tugu foi também marcante na cultura indonésia. O estilo musical Krontjong (ou Keroncong), considerado uma das expressões musicais nacionais da Indonésia, tem as suas origens nas canções nostálgicas e melancólicas dos portugueses em Tugu. Este estilo não só absorveu elementos da música portuguesa como preservou palavras do vocabulário luso e instrumentos característicos, como a cavaquinho. Até hoje, os melhores artistas de Krontjong são frequentemente recrutados em Kampung Tugu.
Uma Ligação que Persiste
Tugu é um exemplo raro e fascinante de como a cultura portuguesa conseguiu resistir ao tempo e à adversidade em terras tão distantes. Apesar de mais de três séculos de separação e da influência dominante dos colonizadores holandeses, os habitantes desta pequena aldeia continuam a preservar um elo com Portugal. A tranquilidade das suas ruas, as tradições que persistem e o carinho pelo país de origem dos seus antepassados fazem de Kampung Tugu um verdadeiro tesouro histórico e cultural.
A herança de Tugu não é apenas uma história de sobrevivência; é também uma prova do poder da cultura para transcender barreiras geográficas e temporais. Enquanto houver canções a serem cantadas e memórias a serem partilhadas, Portugal continuará a viver nos corações dos Tugus.
Esta reportagem que aqui lhe apresentamos, de uma estação televisiva indonésia, é uma prova inegável da forte herança portuguesa na Indonésia. Realizada em indonésio, a reportagem conta com intervenções em inglês do embaixador de Portugal em Jacarta e de uma leitora de português de uma universidade local.
Mesmo sem entender uma palavra do que está a ser dito, as imagens são suficientemente eloquentes para transmitirem o profundo sentimento dos Tugus em relação a Portugal:
Durante muitos anos, o Papiá Tugu foi a língua falada pela população local, um crioulo de origem portuguesa muito semelhante ao Papiá Cristão que ainda hoje se ouve em Malaca. Este crioulo, uma vez vibrante, era mais do que um meio de comunicação: era um testemunho vivo das ligações históricas e culturais entre Portugal e a Indonésia.
A canção que aqui lhe deixamos é um exemplo dessa herança imortalizada. É uma melodia que transcende o tempo, mantendo viva a lembrança de um idioma que foi, outrora, um símbolo de identidade e unidade para a comunidade Tugu. Ao ouvir esta canção, somos transportados para uma era passada, onde o Papiá Tugu ecoava nas ruas e nos lares da aldeia, celebrando as suas raízes portuguesas:
Muitas músicas tradicionais da aldeia de Tugu ainda são cantadas pelos seus habitantes, mesmo que as letras já não sejam totalmente compreendidas pelas gerações mais jovens. Entre elas, destacam-se a “Bastiana” e a “Moresco”, entre outras melodias que resistiram ao tempo. A contribuição de Tugu para a música indonésia é inegável e profunda. A música nacional da Indonésia, conhecida como Krontjong ou Keroncong, deriva das melodias melancólicas e nostálgicas da aldeia de Tugu, incorporando elementos que se fundiram harmoniosamente com as tradições locais.
A influência dos indo-portugueses de Ceilão também deixou a sua marca na música de Tugu. O género musical Cafrinho, introduzido por estes colonizadores, tornou-se parte integrante da cultura musical da aldeia. Ainda hoje, os melhores cantores de Krontjong são frequentemente recrutados de Tugu, o que atesta a qualidade e a autenticidade da formação musical desta comunidade.
Não é apenas o estilo musical que foi preservado; a influência portuguesa estende-se também ao vocabulário utilizado nas letras das músicas e aos instrumentos tocados. Instrumentos tradicionais como a guitarra e o cavaquinho, introduzidos pelos portugueses, são elementos essenciais na execução do Krontjong. As letras das canções, muitas vezes, ainda contêm palavras portuguesas, refletindo a herança linguística deixada pelos colonizadores.
Esta rica tapeçaria musical demonstra como a fusão de culturas pode resultar em novas formas de expressão artística, criando géneros únicos que se tornam parte integrante da identidade de uma nação. A aldeia de Tugu, com a sua história e contribuição musical, é um exemplo vivo de como as tradições podem ser mantidas vivas através das gerações, adaptando-se e evoluindo, mas nunca esquecendo as suas origens.