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«Desencher» é um erro de português?
No Facebook, encontrei quem se queixasse de ter ouvido um jornalista a dizer a curiosa expressão «o estádio está a desencher».
Por baixo do post, em muitos comentários, lá vinham as indignações habituais: não pode ser, isto agora é só ignorantes, essa palavra não existe, os jornalistas já não são o que eram — e por aí fora.
Confesso: nunca tinha ouvido tal verbo. Supus mesmo que o jornalista tivesse tido ali um assomo de criatividade e não deixei de sorrir. Mas, lá no meio dos comentários indignados, noto que alguém declarou a quem quis ouvir que lá na terra dela todos conheciam aquele verbo. Mais: teve o cuidado de ir ao dicionário — daqueles em papel e mais antigos — e encontrou o verbo «desencher».
Ou seja: a palavra existe. Sim, talvez seja do registo popular e já sabemos que há muitas pessoas incapazes de lidar com tais misturas, vá-se lá saber porquê. Também é verdade que o verbo é transitivo e fica a parecer que falta ali qualquer coisa. Agora o que o jornalista não fez foi inventar uma palavra nova… Usou uma palavra que aprendeu como todos aprendemos muitas palavras: entre amigos, colegas e familiares.
Perante isto, qual foi a resposta dos indignados? Uma ou outra pessoa lá aceitou que estava perante uma palavra que não conhecia e não era caso para tanta indignação. Mas outras continuaram imperturbáveis na sua fúria por terem sido expostas a uma palavra desconhecida.
Mais: declararam a quem os quis ouvir que, se o dicionário tinha essa palavra que elas não conheciam, então o dicionário só podia estar errado! «Desencher»? Alguma vez…
Tenho pena, tenho genuína pena de quem anda a ouvir televisão e a ler textos com o dedo já em riste, pronto a apontá-lo, indignado, à primeira palavra que não conhece. O mundo deve ser triste para quem perdeu assim o gosto pela sua língua.
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
Saiba mais nesta página.
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Para isso q existem as figuras de linguagem, que caracterizam erros ou formas de expressão cpm mais ênfase, ou melodia ou…
Nunca leram “….. ela sorria com os olhos…” . Não fica mais leve a personagem?
A língua italiana é repleta de redundâncias que, assim como uma série de palavrinhas especiais que têm a função de enfatizar uma ideia, refletem o jeito de ser do povo italiano: aberto, intenso e exagerado. Seria um desperdício absurdo se os puristas lá deles resolvessem ditar suas regras sem graça.
Por que então, aí no seu e cá no meu lado do Atlântico, não deveríamos permitir que a nossa fala revelasse características e particularidades dos nossos povos?
Quanto aos sorrisos, há deles nos quais os lábios pouco se movem, contam apenas com o brilho dos olhos ; outros são formados por largos movimentos faciais e a expressão “Sorriso nos lábios” não os define. “Sorriso nos lábios” esclarece precisamente, a medida e o grau de intensidade do sorriso. Expressão correta e necessária portanto, eu acho.
Todo mundo tem o direito de ser redundante, e toda língua tem a licença poética para nos defendermos dessas acusações puritanas. Se fosse assim não poderíamos dizer “os pais” pois temos um pai e uma mãe, e não dois pais. Também não poderíamos dizer: “os dez primeiros que…” pois só existe um primeiro, os subsequentes são o segundo, o terceiro. Também não poderíamos dizer “as prioridades” pelo mesmo princípio.
Marco Neves, tive um professor com esse nome, talvez coincidência, talvez seja o próprio. Uma coisa é certa, amantes da língua portuguesa são ! Amo saber, que existem os remanescentes de uma comunicação expressiva e sólida ! Feliz Natal !