«Sorriso nos lábios» e «Desencher» são erros de português?
Convençam-se: um português sem redundâncias é impossível – e muito feio. Será que «Sorriso nos lábios» e «Desencher» são erros de português?
Bolas, que os inventores de erros não param! Ainda agora vi no Facebook uma imagem com uma lista de redundâncias erradas que uma empresa qualquer decidiu criar para me aborrecer o dia. Uma dessas redundâncias proibidas era «um sorriso nos lábios»… Porque, na lógica impecável e implacável de quem criou a imagem, um sorriso tem sempre de incluir os lábios — logo, a expressão está errada.
Ah, a redundância, esse papão dos alarmistas da língua. Não se pode ter redundâncias na língua: fazem mal!
E, no entanto, raramente fazem algum mal que se veja. Aliás, as línguas têm redundâncias que foram sendo criadas de forma natural para ajudar à comunicação e à expressividade — sem estas redundâncias, a comunicação só seria possível em situações em que não há ruído e todos nos entendemos perfeitamente — ou seja, situações muito raras e muito pouco humanas. De certa forma, uma língua sem redundâncias seria uma língua de robots.
Basta pensar que se eu digo «tu és linda» já estou a usar uma redundância porque, se a forma verbal é «és», o «tu» não está ali a fazer nada. Sim, a gramática do português até me permite omitir o «tu» — mas há casos em que a frase pede o pronome pessoal. Os anti-redundâncias acham que nunca devo usar o «tu» por ser redundante?
Ah, mas dizem-me agora: isso é um absurdo! Isso é ir contra o funcionamento da língua!
Exacto! A língua funciona com redundâncias: na gramática, no vocabulário e nas expressões que usamos todos os dias. A linguagem humana tem redundâncias a torto e a direito — como o nosso corpo e como, aliás, toda a natureza.
Querem mesmo evitar as tais redundâncias à força? Para quê? Não vamos ficar a falar de forma mais clara nem mais bonita. Antes pelo contrário.
Enfim, eu sei que não querem evitar todas as redundâncias. Só umas quantas, escolhidas assim à sorte. Mas para quê, pergunto eu? Só para terem o belo prazer de corrigir os outros?
Convençam-se: um português sem redundâncias é impossível — e muito feio. Aliás, se eu também odiasse as redundâncias, podia ter reduzido este texto a uma só frase: «As redundâncias não fazem mal.» Mas não era a mesma coisa, pois não?
Para verem onde quero chegar na prática, reparem que a tal lista de redundâncias que encontrei no Facebook incluía estas três expressões supostamente erradas (entre outras mais perigosas):
- «sorriso nos lábios»
- «elo de ligação»
- «novo lançamento»
(Já agora, uma pergunta: se alguém fizer dois lançamentos dum livro em terras diferentes, o segundo lançamento não é novo?)
Enfim, se querem mesmo obrigar toda a gente a evitar «elo de ligação» e «novo lançamento», força nisso.
Agora, a redundância que gostava de continuar a usar, se me permitem, é essa do sorriso nos lábios.
Reparem nisto:
«Ela vinha a descer a rua com um sorriso nos lábios.»
Sim, sim, aquele «nos lábios» pode ser retirado e o significado é o mesmo:
«Ela vinha a descer a rua com um sorriso.»
Sim, porra: o significado é o mesmo — o sorriso é que não. E a própria rua fica bem menos alegre.
E assim andam algumas pessoas com uma caneta na mão a riscar a vermelho as palavras dos outros, mesmo quando essas palavras não fazem mal nenhum e são apenas uma forma um pouco mais expressiva — mais visual, mais clara! — de usar a língua.
Tremo ao pensar no que esta gente faria perante um poema. A poesia! Que coisa tão cheia de redundâncias, não é?
Enfim, para estes correctores compulsivos, o que se pode dizer em duas palavras nunca se deve dizer em três ou quatro. Isto da língua é uma coisa muito séria e muito espartana: é para usar no osso, sempre no mínimo, sem brincadeiras e — acima de tudo — sem palavras a mais.
Ora bolas. Deixem lá isso e ponham mas é um sorriso nesses lábios tão sérios.
(cont.)
Para isso q existem as figuras de linguagem, que caracterizam erros ou formas de expressão cpm mais ênfase, ou melodia ou…
Nunca leram “….. ela sorria com os olhos…” . Não fica mais leve a personagem?
A língua italiana é repleta de redundâncias que, assim como uma série de palavrinhas especiais que têm a função de enfatizar uma ideia, refletem o jeito de ser do povo italiano: aberto, intenso e exagerado. Seria um desperdício absurdo se os puristas lá deles resolvessem ditar suas regras sem graça.
Por que então, aí no seu e cá no meu lado do Atlântico, não deveríamos permitir que a nossa fala revelasse características e particularidades dos nossos povos?
Quanto aos sorrisos, há deles nos quais os lábios pouco se movem, contam apenas com o brilho dos olhos ; outros são formados por largos movimentos faciais e a expressão “Sorriso nos lábios” não os define. “Sorriso nos lábios” esclarece precisamente, a medida e o grau de intensidade do sorriso. Expressão correta e necessária portanto, eu acho.
Todo mundo tem o direito de ser redundante, e toda língua tem a licença poética para nos defendermos dessas acusações puritanas. Se fosse assim não poderíamos dizer “os pais” pois temos um pai e uma mãe, e não dois pais. Também não poderíamos dizer: “os dez primeiros que…” pois só existe um primeiro, os subsequentes são o segundo, o terceiro. Também não poderíamos dizer “as prioridades” pelo mesmo princípio.
Marco Neves, tive um professor com esse nome, talvez coincidência, talvez seja o próprio. Uma coisa é certa, amantes da língua portuguesa são ! Amo saber, que existem os remanescentes de uma comunicação expressiva e sólida ! Feliz Natal !