Até chegar ao século VI, esta viagem pelos dias da semana deriva de uma pergunta do meu filho. Qual a razão de não chamarmos «primeira-feira» ao domingo?

Por que não chamamos «primeira-feira» ao domingo?
O desconcerto do mundo
Um dia destes, enquanto se despachava para ir para a escola, o Simão perguntou:
— Hoje é sexta-feira?
— Sim, é!
Calou-se, a pensar.
— Sabem uma coisa que eu não percebo sobre o mundo?
A minha mulher e eu olhámos um para o outro, com algum medo.
— Diz lá…
— Se há segunda-feira, porque é que não há primeira-feira?
Sorrimos e lá lhe dissemos que tinha de se despachar — e que, no fundo, a primeira-feira era o domingo! Ele não ficou muito convencido. O domingo é o domingo, ponto final. Mas, enfim, o relógio avançava e a escola estava à espera.
Fiquei a pensar na pergunta dele. Há, de facto, uma história por trás dos nomes dos dias úteis — e tem algumas surpresas.
Mas, antes disso, proponho uma viagem rápida pelas semanas deste mundo.
Volta ao mundo pelos dias da semana
Aqui ao lado, em castelhano, o nome da segunda-feira, longe dos nossos números, olha para a lua: «lunes».
Já em catalão, o nome é «dilluns» — nessa língua, todos os dias da semana começam pelas mesmas duas letras: «dilluns, dimarts, dimecres, dijous, divendres, dissabte, diumenge».
Saltamos para França e esse «di» salta para o fim, menos ao domingo: «lundi, mardi, mercredi, jeudi, vendredi, samedi, dimanche».
Enfim, podíamos continuar pela Europa fora… Os alemães chamam «meio da semana» à quarta-feira: «Mittwoch».
Já os russos chamam à segunda-feira «понедельник» («ponedel’nik»). O significado literal é algo como «[dia] depois do [dia de] não fazer nada». Isto porque o antigo nome do domingo, em russo, era «недѣля» («nedě́lja»), que significa algo como «[dia de] não fazer nada». Hoje em dia, em russo, o domingo chama-se «воскресенье» («voskresénʹje»), ou seja, «dia da ressurreição», enquanto o antigo nome passou a designar a semana inteira.
Noutras línguas eslavas, o nome para domingo continua a ser «o não fazer nada». Seja como for, a segunda-feira continua a ser, também em russo, o dia depois do dia em que não fazemos nada. (Ainda dizem que as línguas não são interessantes…) Ah! Quanto ao resto da semana, os russos chamam algo como «quinto dia» à sexta-feira, o que deve confundir um português que aprenda a língua…
Mudando de continente, percebemos que, em árabe e em hebraico, os dias seguem uma ordem parecida com a nossa: a segunda-feira é o segundo dia.
Damos um salto no globo. Descobri esta semana, através de Gaston Dorren (o autor do excelente livro Babel: Around the World in Twenty Languages), que o vietnamita também relaciona a segunda-feira com o número dois… Será que foi influência nossa, que para lá levámos as letras do alfabeto?
Quem inventou estas feiras todas?
Chegou a altura de viajar no tempo e perceber de onde vêm as nossas feiras…
Se as outras línguas das redondezas mantêm a tradição romana de dar nomes de deuses aos dias, neste recanto da península alguém se lembrou de lhes dar outros nomes. O culpado foi São Martinho de Dume, bispo de Braga que, no século VI, quis dar nomes menos pagãos aos dias da Semana Santa. Pelo menos nessa semana! — diria o bispo.
Ora, a Semana Santa era toda de descanso e oração — uma semana feita só de feriados…
O primeiro feriado era mesmo o Domingo de Ramos, que já tinha nome bem cristão («Dia do Senhor») — e assim ficou.
Pois bem, os dias seguintes ganharam novos nomes [baseados nos nomes já então usados na liturgia da Igreja*]: segundo feriado («secunda feria»), terceiro feriado («tertia feria»), quarto feriado («quarta feria») — e por aí fora…
Com o tempo, esses nomes passaram a usar-se para designar os dias de todas as semanas do ano.
Note-se que São Martinho de Dume era um bispo de Braga, cidade do Reino dos Suevos, a antiga Galécia romana. Assim, os nomes com «feira» tornaram-se típicos da língua dessa zona, língua que se continuou a falar pelos séculos fora até chegar ao português e ao galego dos dias de hoje.
Ainda encontramos quem use os nomes com «feira» na Galiza — e há até uma campanha para recuperar os nomes tradicionais. Depois, numa reviravolta que responde ao meu filho, há quem tenha encontrado o termo «primeira-feira» como referência ao domingo — nalgumas aldeias da Galiza!
Enfim, há de facto coisas espantosas neste mundo, como diria o Simão. Os nossos dias de trabalho são precisamente os dias com «feriado» no nome… — As voltas que as línguas dão!
Resta-me desejar a quem me lê uma boa primeira-feira…
* Adenda: Continuei a ler sobre o assunto e chego à conclusão que o uso do termo «feria» para designar os dias é anterior a São Martinho de Dume, sendo o termo habitual para os dias da semana em latim eclesiástico — o bispo bracarense não inventou os nomes, mas incentivou o seu uso fora do âmbito eclesiástico, chamando aos nomes anteriores «nomes de demónios». Este artigo do Ciberdúvidas discute o mesmo assunto. Continua a ser verdade que a origem da «feria» do latim eclesiástico é a mesma que a do nosso termo «feriado». Seja como for: boa segunda-feira!
(Muito obrigado a Luis Trigo pela pista sobre a «primeira-feira» galega, a Serge Lunin pelas indicações sobre a «segunda-feira» russa e a Gaston Dorren pelas informações sobre o vietnamita.)
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
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Curioso que eu pensei que o termo feira incluido nas expressões segunda, terça etc.. provinha das realizações das feiras autenticas onde se comerciavam vários produtos…
Tema interessante como todos do Autor
Isto sim, acho que é matéria para ser obrigatória no Ensino de Língua Portuguesa. Eu que já tenho 80 anos , não fazia a mínima ideia, obrigado pela vossa lição!
Eu ca sempre estive muito a pensar de onde vieram todas essa FEIRAS e somente hoje e que minha curiosidade foi resolvida. Muito obrigado pela voss licao.