Os sete medos de quem escreve em português
Quem se deixa levar por estes medos fáceis presta um mau serviço à língua e aos falantes da língua. Os sete medos de quem escreve em português.
Há umas semanas, um amigo do Facebook deu-me um toque: «olha que andas a exagerar nessa obsessão com os erros falsos». Sim, é verdade. Falo muito desse assunto por aqui. Mas não pensem que ando o dia todo a pensar nisso. Há muito para fazer e poucas horas no dia.
Agora, é verdade: quando escrevo no blogue (uns quantos minutos por dia), penso muito neste assunto. Mas, vá, deixem-me lá justificar a obsessão: parece-me a mim que as hipercorrecções, principalmente quando são feitas de forma desabrida e sem margem para dúvidas ou discussões, são dos poucos erros de português que prejudicam todos os falantes da língua — os erros normais quase só prejudicam quem os dá.
Ou seja, corrigir alguém sem razão e de forma mal-educada parece-me a mim bem pior do que dar um erro ortográfico. Os erros falsos acabam por limitar a língua e estragá-la para todos.
Ainda há tempos, falei por aqui dum caso concreto: a fúria absurda contra o uso duma palavra mais popular por parte dum jornalista. O jornal acabou por mudar a notícia, tirando-lhe todo o sal. E, desconfio, aquele jornalista vai começar a escrever com mais insegurança, arriscando menos, escrevendo pior. O jornal vai pensar duas vezes antes de deixar passar uma notícia que use de forma inteligente e bem-humorada vários registos da língua.
Agora, o que me enerva é que há quem goste disto! Há quem tente espicaçar o medo nos falantes, por razões que me escapam. Normalmente, quem acicata o medo linguístico envolve o seu discurso num moralismo desastrado, em que tudo é pecado e tudo é prova da decadência dos costumes (neste caso, da língua).
Aliás, parece-me que os discursos sobre a língua são dos últimos refúgios respeitáveis desse moralismo bacoco que levava muitos a decretar a música e o simples divertimento como prova da decadência e como razão (por exemplo) para o terramoto de 1755. Deus encontrava-nos a ouvir música e a rir? Dá-nos com um terramoto na tromba! Hoje em dia dizemos «terramoto» em vez de «terremoto»? Lá vem o fim do mundo e a decadência da língua e a desgraça universal…
Pois, mas fora desses casos extremos dos moralistas da língua, muitos dos falsos erros surgem da insegurança que muitos sentem e da genuína preocupação em não errar. Surgem dos medos que todos sentimos.
Ou seja, todos podemos cair em hipercorrecções porque todos sentimos, mais cedo ou mais tarde, certas inseguranças. Por isso mesmo, aconselha-se cautela. Antes de atirar pedras, tenhamos um pouco de bom-senso, usemos a dúvida, sempre tão inteligente.
O que gostava de fazer com este textinho (sim, estou a ser irónico com o «inho») é identificar alguns dos medos que os falantes da língua sentem, perceber como nos levam ao erro e, assim, impedir o empobrecimento da língua que a visão moralista da língua quase sempre implica.
Aqui estão, assim, sete dos medos de quem escreve em português. São medos que encontro em muitos das queixas desvairadas pelo Facebook fora e em muitas obras catastrofistas, daquelas que acham que a língua está moribunda:
1. O medo da ambiguidade
Há frases ambíguas, claro. A ambiguidade pode ser um grande erro! Mas a ambiguidade não existe numa regra ou palavra em abstracto, mas em cada frase em particular.
Dou um exemplo. Ainda há uns dias, alguém me dizia que «a gente» como sinónimo de «nós» é errado porque pode ser ambíguo: podemos confundir a expressão com «a gente que está ali ao fundo».
Ora, não consigo lembrar-me de um único caso em que alguém me tenha dito algo como «a gente vai contigo» e eu não tenha percebido o significado naquele momento. Ainda há dias fui buscar o meu filho à escola e disse: «a gente vai ter com a mãe». Fui ambíguo? Não. Dei cabo da língua? Não me parece…
Também já ouvi alguém insistir nisto: dizer «não há nada» deve ser considerado erro porque, em certos textos filosóficos sobre lógica, pode dar origem a ambiguidades. Tudo bem. Mas, se assim for, não se use tal construção nesses textos!
Se quisermos mesmo eliminar todas as palavras ou construções que permitem ambiguidades, vamos ter de rebentar com a língua quase toda.
Por exemplo, a palavra «seu» dá origem a ambiguidades: se eu dizer «o João discutiu com a Maria o seu livro» estou a falar do livro do João ou da Maria? A frase é ambígua e, por isso, se não quisermos manter a ambiguidade, devemos mudá-la. Mas daí a tentar proibir a palavra «seu» vai uma grande distância… Muito grande mesmo.
É a mesma distância que acho que não devemos percorrer no caso de «não há nada», «a gente», «espaço de tempo», etc. — se as expressões forem ambíguas numa determinada frase, temos de refazer essa frase. Mas não temos de eliminar as expressões da língua, com medo de não sabermos detectar ambiguidades na vida real…
Por isso, a todos os que querem proteger as palavras quando são atacadas sem razão, digo-vos: quando alguém achar que uma construção ou palavra está errada porque pode dar origem a ambiguidades no abstracto, perguntem-lhe se também quer eliminar a palavra «seu».
(cont.)
Me desculpe, mas “parece-me a mim” não será uma redundância? Parece-me.