Miguel Esteves Cardoso: belíssimos textos dedicados à Mãe
Miguel Esteves Cardoso, brilhante escritor português, tem-nos deliciado com a sua forma de escrever. Aqui vos deixamos estes belíssimos textos dedicados à Mãe.

A nossa mãe
Ter mãe é uma grande sorte que passa. Cada dia tenho mais saudades dela, daquela pessoa que só ela era e que eu apreciava tanto.

Encontro-me com o António. Tem 26 anos e está a pensar em voltar para Portugal. Falamos durante três horas. Descobrimos que somos muito parecidos. Conhecemos os mesmos lugares. Temos saudades das mesmas coisas.
Ele tem saudades da mãe dele que nasceu em 1969. Eu tenho inveja das saudades dele e tenho saudades da minha mãe que morreu em 2016.

A minha mãe não era a minha melhor amiga. Também era isso mas era, sobretudo, a minha mãe. Mãe há só uma: é difícil perceber-se esta grande verdade. Da minha inveja só fica o conselho: aproveita bem o tempo e o amor da tua mãe.
Ouve bem o que ela diz. Ri-te com ela. Defende-a sempre que puderes. Agradece a Deus a sorte que tiveste em ter uma mãe. Em ter uma mãe assim. E só em ter uma mãe.

Na Tristana e na Sara, minhas filhas, netas da Avó Inglesa, como tratavam a minha mãe, vejo as mães de todo o mundo. Sinto não só o amor como o divertimento e a admiração.
Ter mãe é uma grande sorte que passa. A minha bem me avisou que as mães sempre decepcionam. Mas morreu à mesma. Cada dia que passa tenho mais saudades dela, daquela pessoa que só ela era e que eu apreciava tanto.

No amor do António pela mãe vejo a sorte que tive e que tenho ainda, no passado, como lembrança e gratidão. Quem me dera que a minha mãe ainda estivesse viva.
Dei-lhe sempre muito valor mas só depois de morrer é que percebi o valor imenso que tinha. Não era só alguém que queria o meu bem. Não era só a pessoa mais divertida que eu já conheci. Era a minha mãe. E perdi-a para sempre. Todos os dias.
Autor: Miguel Esteves Cardoso

O riso das mães
As mães não nos deixam ficar mal: não nos deixam. Por muito bem que estejamos elas voltam.

A minha mãe está sempre a voltar. Aparece-me mais vezes do que quando estava viva. Sinto-a a rir-se dentro de mim, a desafiar-me a lembrar-me dela: “Diz lá então o que é que diz esta mãe tão chata que não te deixa em paz?”
Antes de morrer ela confidenciou-me “as mães, por muito boas que sejam, acabam sempre por deixar mal os filhos”. Em inglês: they always let you down. Senti-me imediatamente culpado: não estaria ela a falar nos filhos? Não somos nós que as desiludimos, num instantinho?

As mães não nos deixam ficar mal: não nos deixam. Por muito bem que estejamos elas voltam. Até voltam mais quando estamos bem e esquecemos as saudades que temos delas.
Voltam para nos fazer rir, voltam para nos mostrar como, voltam para ver as coisas com os olhos delas.

Há um grande amor que se solta quando a presença física desaparece. Há um grande amor que espera por esse vazio para se mostrar. É como a voz dela dentro de mim: só comecei a ouvi-la no silêncio que caiu à minha volta quando ela se foi embora.
Durante uns tempos — que nunca mais acabavam — doía-me que eu não pudesse falar com ela. Mas doía-me ainda mais ela não poder falar comigo.

Sim, não posso telefonar-lhe. Mas já não preciso. Ela fala comigo várias vezes por dia. Eu conto à Maria João, tal e qual tivesse acabado de falar com ela. Ela ajuda-me a rir, a perceber, a entregar-me.
As mães só fingem que nos deixam ficar mal. A verdade — que também é triste — é que não nos largam. Porque nós não as deixamos. Nem podemos.
Autor: Miguel Esteves Cardoso

O fim da tua casa
Deixaste-nos o teu sentido de humor e a tua absoluta indiferença para com o que “os outros pensam”.

Mãe, onde quer que estejas – nem que seja no nada – sei que estás melhor do que estavas quando me disseste, no dia em que te fui buscar ao hospital, que “estou péssima mas ainda não é tempo de eu ir para um lar”.
Na noite desse mesmo dia morreste. Não estavas à espera de morrer. Ias fazer 93 anos mas ainda planeavas, por muito fraca e cheia de dores que estivesses, uma estadia final no British Retirement Home, mesmo ali à esquina da casa onde vivias, onde trabalhaste vários anos.

A tua única vontade na tua (agora já posso dizer) velhice era não dares trabalho a ninguém. Não deste. Foste sempre uma alegria ou, quando estavas rabugenta (que era muitas vezes) um tormento felizmente temporário.
Deixaste-nos o teu sentido de humor e a tua absoluta indiferença para com o que “os outros pensam”. Guardo os teus conselhos como os tesouros que são: “So what?”, “Why not?” e, sobretudo, “Let them think what they like“.

Ensinaste-nos nada. Deixaste que fôssemos como fôssemos. Podes não ter sido uma grande mãe (quem é que quer uma mãe grande?) mas foste uma grande mulher.
Amo-te, minha mãe. Tanto tu como o meu pai não amavam os pais que tinham mas amaram as mães que, por uma razão ou outra, não tiveram tempo e oportunidade bastantes para amar.

Passa bem, Mummy. Seja qual fôr o outro lado – nem que seja nenhum – eu e muitos outros estaremos lá contigo. Até ao fim, que agora começou, mal.
O amor e a saudade de ti nunca hão-de morrer. Como tu.
Autor: Miguel Esteves Cardoso
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