Uma grande parte das línguas do mundo não usa alfabetos: por exemplo, o chinês usa um sistema de escrita logográfica. Venha daí nesta viagem pelos seis alfabetos do mundo…

Ando a preparar um texto sobre um dos poucos sistemas de escrita indecifráveis que ainda há no mundo. Não vou adiantar mais sobre o assunto — o certo é que o texto anda devagar, os dias são curtos, há tanta coisa… Mas ao ler sobre esse estranho sistema de escrita, fui-me lembrando dos nossos conhecidos alfabetos.
Uma grande parte das línguas do mundo não usa alfabetos: por exemplo, o chinês usa um sistema de escrita logográfica, em que cada símbolo representa uma palavra ou morfema; o japonês usa um sistema de escrita silábica, em que cada símbolo representa uma sílaba; o árabe usa um sistema consonântico (ou «abjad»), em que cada símbolo representa uma consoante (as vogais são representadas por sinais diacríticos — à semelhança dos nossos acentos — ou ignoradas).
Já os alfabetos são sistemas de escrita que representam tanto as vogais como as consoantes. Representam, portanto, os sons. (Para sermos precisos, os alfabetos tentam representar os fonemas e não os sons, mas isso fica para outro dia. Diga-se, já agora, que o verbo «tentar» é significativo: como sabemos, a ortografia da grande maioria das línguas é tudo menos simples.)
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Pois bem, como ainda não consegui acabar o tal texto, lembrei-me de deixar aqui uma pequena nota sobre os seis alfabetos do mundo para aliviar a comichão da escrita…
1. Alfabeto grego
Começamos pelo grego, com letras tão nossas conhecidas. Não só sabemos alguns dos nomes («alfa» e «ómega», para começar e acabar), como até identificamos alguns dos sons. Neste caso, a matemática dá-nos uma ajuda. Afinal, o nome do nosso país em grego começa pela letra pi — embora maiúscula: Πορτογαλία.
Muitas das nossas palavras vêm do grego — mas o aspecto é bem outro. Basta pensar na «geografia», que em grego é praticamente igual, não fosse ser tão diferente: γεωγραφία.
2. Alfabeto cirílico
Um alfabeto que nasceu a partir do grego e é hoje usado em muitas línguas eslavas (e não só). Há uma letra magnífica neste alfabeto: Щ. Magnífica porque representa, em ucraniano, os sons «chtch». Uma só letra para tanto «ch»…
Curiosamente, há uma língua que usava este alfabeto até há poucos meses e agora usa o nosso alfabeto latino. Falo do cazaque. Esta mudança não se fez sem alguma resistência, principalmente porque a versão original da ortografia latina do cazaque enchia a escrita de apóstrofos, o que era visto por muitos como pouco prático e muito feio.
Pois, no dia 19 de Fevereiro de 2018, o governo do Cazaquistão aboliu os apóstrofos e afinou a ortografia. A transição continua com o objectivo de ter uma língua escrita em alfabeto latino.
Esta mudança fez-se, curiosamente, para que a língua se tornasse mais distinta do russo, que também é muito usado no país. Ou seja, este povo tem agora dois alfabetos em vez de um em nome da identidade da sua língua própria. A escrita é muito mais do que um código: é uma bandeira — e convém ser uma bandeira bonita, como dizem os cazaques com horror ao excesso de apóstrofos.
Não Já agora, lembro outra língua que também passou a usar o alfabeto latino: o turco. Até ao início do século XX, usava o «alfabeto» árabe (as aspas ficam para lembrar que, na verdade, o árabe usa um abjad). Mas já voltamos ao turco. Antes disso, olhemos para um alfabeto ali ao lado…
3. Alfabeto arménio
Chegamos agora a um alfabeto um pouco mais distante e que poucas vezes nos passa pela frente: o alfabeto arménio. O aspecto é este:
É um alfabeto antigo, criado no século V e que tem hoje em dia 39 letras, o que, nos computadores, obriga a usar teclas que, pelos nossos lados, levam sinais de pontuação e acentos.
Continuemos a viagem sem sair da mesma região do mundo…
4. Alfabeto georgiano
Pois, se o arménio é pouco conhecido, não deixa de ter o seu ar de escrita normal, a lembrar, de vez em quando, as nossas letras. Já o georgiano… O georgiano é outra coisa! Parece um alfabeto para brincar, inventado por crianças, cheio de bolinhas, letras redondinhas e corações:
O mais curioso? Não se sabe muito bem qual é a origem deste alfabeto…
5. Alfabeto latino
O nosso estimadíssimo alfabeto, usado um pouco por todo o mundo, desde o português ao… vietnamita!
O alfabeto é só um, mas a maneira como cada língua usa as letras varia muito pelo mundo fora. O inglês, como sabemos, usa apenas as letras, sem mais sinais — embora, na verdade, isto seja muito enganador: é uma língua que tende a preservar os sinais que vêm com as palavras que engole, como no caso de façade. Aliás, para dizer a verdade, esta aparente simplicidade do alfabeto à inglesa esconde uma ortografia complexa, cheia de letras com várias leituras (ou nenhuma, como o «k» e o «gh» de «knight»).
Temos ainda o turco, que decidiu dar à pinta do «i» o estatuto de acento, o que significa que há um «i» sem pinta («ı» e «I») e um «i» com pinta («i» e «İ»). Repare o leitor que o nosso «i» tem pinta na versão minúscula e não tem pinta na versão maiúscula. Já os turcos gostam de pôr os pontos nos is…
Mas a língua que usa o alfabeto latino de forma mais curiosa é o vietnamita. Não se limita a ter acentos, mas tem acentos em cima de acentos — o que parece ser essencial para representar os vários tons de cada sílaba, tons esses necessários para distinguir significados. Aqui fica um exemplo (o início do artigo wikipédico sobre o vietnamita em vietnamita):
Sim, aquele «e» no título tem um acento circunflexo e um acento agudo ao mesmo tempo! Pensará o leitor que os vietnamitas são loucos? Enfim, loucos terão sido os missionários portugueses que inventaram tal sistema. O certo é que os vietnamitas, hoje em dia, usam sem problemas um alfabeto pintalgado de acentos e riscos por todo o lado.
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6. Alfabeto coreano
A escrita coreana tem este aspecto:
Alfabeto? Não será isto um sistema logográfico como o chinês ou um silabário como o japonês? Na verdade, não. O coreano é um alfabeto, pois representa as consoantes e as vogais.
No entanto, as consoantes e as vogais são representadas não de forma linear, mas antes em grupos silábicos. Assim, cada símbolo é uma sílaba, mas pode ser dividido nos vários sons que compõem essa sílaba. Aqui está a divisão da palavra «Hangeul», que significa «coreano» (a fonte da imagem é esta):

Já agora, para terminar, convém dizer algo que nos parece pouco natural, mas é verdade: uma língua não depende do alfabeto em que está escrita. O português podia ser escrito usando o alfabeto grego, desde que encontrássemos regras de ortografia para esse uso. Por exemplo, a frase «Como te chamas?» poderia ser escrita «Κομο τε χαμας;» — e continuaria a ser português… Isto, claro, se os portugueses estivessem para aí virados — o que não estão e ainda bem!
E pronto, foi esta a nossa pequena viagem pelos alfabetos do mundo.
Autor: Marco Neves
Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa, A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa e A Baleia Que Engoliu Um Espanhol.
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